Evoluções recentes no direito inglês das “insurance warranties”.

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Autora: Dra. Maria Inês Viana de Oliveira Martins, Assistente de Teoria Geral do Direito Civil e de Economia Política, Universidade de Coimbra, mi.oliveiramartins@gmail.com

Resumen: O presente escrito trata a evolução da regulação das “insurance warranties” no Direito inglês, perante o pano de fundo da recente substituição do seu regime tradicional, constante do Marine Insurance Act, por um novo regime constante do Insurance Act de 2015. Dá-se conta das críticas ao carácter draconiano e à falta de transparência do anterior regime e expõe-se os principais traços caracterizadores do novo regime, com especial destaque para a introdução de testes de conexão do risco.

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Sumario:
1. Enquadramento da questão nas tendências de evolução dos ordenamentos europeus.
2.  Contexto da aprovação do Insurance Act.
3. Estrutura das “warranties” e sua regulação tradicional.
4. As novidades trazidas pelo Insurance Act.

 

1. A preservação da utilidade da cobertura, mantendo-se esta mesmo quando é a actuação do segurado a interferir no risco ou no sinistro, é um eixo central nas alterações à regulação do contrato de seguro nos países europeus ao longo dos sécs. XX e XXI. O período é longo, mas a tendência é discernível, impondo-se no sentido da garantia de que a cobertura do risco contratado apenas é posta em causa por factos que transcendam o risco que o segurado pode confiar em ter transferido para a esfera do segurador. Reconhece-se, neste processo, que não é sempre o segurado a parte favorecida pela assimetria informativa; no que concirna à valoração dos factos para efeitos de relevo estatístico ou mesmo causal, é o segurador a deter a experiência e o saber especializado. Descortina-se, como tal, também margem para o oportunismo do segurador, em cujas mãos repousa, em grande medida, a efectividade do direito do segurado. Verifica-se, com tudo isto, uma mutação na compreensão do princípio da máxima boa fé, tradicionalmente invocado de modo sistemático contra o segurado.

Actualmente assistimos, pois, a um separar das águas. De um lado, as normas que actuam a reacção contra a fraude, mantendo toda a sua dureza e mesmo o relevo jurídico-penal (cfr., por exemplo, o art. 1:103 dos PEDCS). Para lá destas, a reacção dos ordenamentos jurídicos tem sido sobretudo no sentido de protecção do adquirente de seguros face à preservação da utilidade da cobertura contratada. Visa-se evitar que a imposição de exigências de conduta ligadas ao risco, cujo não cumprimento comprometa o direito à prestação seguradora, venha esvaziar o contrato do seu sentido útil.

Esta linha de evolução começa com as legislações especificamente votadas ao seguro terrestre que, nos inícios do séc. passado, despontaram na esfera germânica; tem específica refracção no princípio da protecção da parte mais frágil em sede seguradora, atinente aos riscos de massa e, mais latamente, no movimento de protecção do consumidor; e estende-se praticamente até ao presente, em que nos cumpre assinalar a recente aprovação do Insurance Act de 2015, que reformou drasticamente o sistema leonino das “insurance warranties”. É da mudança de paradigma que este introduz no Direito dos seguros inglês que pretendemos dar conta neste escrito.

 

2. O Insurance Act recebeu o “royal assent” a 12 de Fevereiro de 2015 e entrará em vigor a 12 de Agosto de 2016 na Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte (cfr., para as limitações quanto a este último país, a Secção 23). Para o que aqui releva, este veio estabelecer limites à severidade do regime das “insurance warranties” – severidade que se entendia não ser alheia à perda de quota do mercado inglês de seguro marítimo inglês para mercados rivais, como o alemão (Soyer, B.: “Beginning of a new era for insurance warranties?”, LMCLQ, 2013, pp. 384-400, pp. 385-386; Hare, J.: “The omnipotent warranty: England v. the world”, in Marine Insurance at the Turn of the Millennium, II, coord. por M. Huybrechts, E. Van Hooydonk e C. Dieryck, Intersentia, Antuérpia/Groningen/Oxford, 2000, p. 52).

Já em 1980 a Law Commission se havia debruçado sobre o tema das “warranties”, tecendo ao sistema uma crítica similar à que muito recentemente se apontou (“Insurance law: non-disclosure and breach of warranty: report on a reference under section 3(1) (e) of the Law Commissions Act 1965”, Relatório N.º 104, Cmnd 8064, de 1980). Tal como nessa gorada tentativa, o impulso para a reforma actual proveio em parte dos trabalhos desenvolvidos em sede europeia com vista à consecução de um regime unificado para o contrato de seguro (Merkin, R., e Lowry, J.: “Reconstructing Insurance Law: The Law Commissions’ Consultation Paper”, Modern Law Review, 2008, n.º 1, pp. 95-113, p. 95). Mais decisivo para esta reforma dos preceitos que regem o contrato de seguro foi, porém, o impulso da parte dos próprios “stakeholders”. Foi determinante o relatório apresentado pela “British Insurance Law Association”, em 2002, e preparado por um sub-comité integrado por seguradores, académicos, advogados, e técnicos de liquidação de sinistros. No tocante em especial ao regime das “warranties”, o novo processo conduzido pela “Law Commission” e pela “Scottish Law Commission”, no sentido da avaliação do impacto da regulação vigente e elaboração de propostas de refoma, culminou com a apresentação de um relatório final, em 2014: “Insurance contract law: Business disclosure; warranties; insurer’s remedies for fraudulent claims; and late payment”, de 2014 (adiante, “Relatório de 2014”; sobre o contexto da reforma legislativa, cfr. pp. 4 e ss.). As provisões incluídas no “Insurance Act” a este respeito, de que daremos conta de seguida, incorporaram em grande medida as recomendações conclusivamente formuladas nesse mesmo relatório.

 

3. As “insurance warranties” são muito latamente entendidas à face dos textos legais como cláusulas que determinam que até determinado momento certa conduta deve ser adoptada ou certa condição deve ser preenchida (cfr. já a Secção 33, 1), do “Marine Insurance Act” e a Secção 10, 6) a) do “Insurance Act”). Tipicamente, trata-se de promessas de adopção de certa conduta de controlo do risco: não é, porém, evidente a sua identificação, já que esta provém de critérios materiais, e não formais, e que o mesmo escopo material pode ser servido por outras figuras.

Com efeito, estas não são as únicas cláusulas a lançar exigências de conduta por sobre o segurado, manifestando-se uma pluralidade de possibilidades de conformação.

O regime que vale para as “warranties” à luz do “Marine Insurance Act” é, de entre estas várias possibilidades, geralmente feito corresponder ao das cláusulas configuradas como “conditions precedent to any liability”. Com efeito, mostra-se corrente a afirmação de que o funcionamento como “condition precendent to any liability” descreve a mecânica das “warranties”, que surgem por vezes mesmo definidas, para efeitos práticos, como “any term of an insurance contract, which, properly construed, is a condition precedent to the inception or continuation of cover”, cujo não acatamento determina a exoneração automática do segurador (Lord Goff no caso Bank of Nova Scotia v. Hellenic Mutual War Risks Association (Bermuda) Ltd. (The Good Luck), de 1992; Clarke, M.: “Warranties: the guaranteed curse of English insurance contract law”, RGDA, 2012, n.º 3, pp. 581-597, p. 582; Legh-Jones, N., Birds, J., e Owen, D. G.: MacGillivray on Insurance Law, Sweet & Maxwell, Londres, 2008, pp. 235 e 239-240). Tal afirmação deve ser tomada com certa cautela, já que não dá o devido relevo à complexidade inerente ao próprio conceito de “condition”. Com efeito, este termo abarca na verdade duas figuras diversas: as “conditions precedent”, reportando-se à ordenação temporal das prestações contrapostas, e as “conditions” enquanto termo referido à conformidade da prestação e oposto às “warranties” em sentido geral, bem como aos “intermediate terms”. Com as “conditions” do primeiro tipo (“precedent”), as “warranties” seguradoras partilham o facto de funcionarem de modo automático. Contudo, ao contrário do que ocorre no âmbito daquelas, as “warranties” não são condição para que a garantia devida pelo segurador sequer se constitua: pelo contrário, estas interferem com a produção de efeitos de uma garantia que já se encontra em vigor. Acresce que, ao contrário do que ocorre com as “conditions precedent”, a sua violação não se limita a ter um efeito suspensivo sobre os direitos da contraparte (permitindo à parte fiel apenas recusar a prestação enquanto subsistir o incumprimento), já que exoneram o segurador para futuro. Já com as “conditions” atinentes à conformidade da prestação, as “warranties” partilham o facto de fundarem um direito a recusar definitivamente a prestação; e apartam-se das mesmas por força do seu funcionamento automático (Treitel, G.: The law of contract, Sweet and Maxwell, Londres, 2003, pp. 788-789 e 846-847; Peel, E.: The law of contract, Sweet and Maxwell, Londres, 2011, n.ºs 18-039 e ss).

Como dissemos, deveres de conduta deste tipo podem ainda ser conformados como “conditions precedent to recovery”, caso em que é claro que o não cumprimento apenas preclude uma concreta pretensão – e, em todo o caso, a defesa não é invocável no caso de ter já havido reparação do incumprimento. Por último, tais exigências podem ser qualificadas como “innominate terms”, sendo próximos das “warranties” em sentido geral (diverso do das “insurance warranties”) – dão então ao segurador o direito a fazer cessar o contrato, mas só quando se concluir que a violação é repudiatória, no sentido de atentar contra as bases do contrato; quando a violação não tiver esse carácter, ou o segurador não exercer o seu direito a fazer cessar o contrato, terá de todo o modo direito a reparação (Legh-Jones, N., Birds, J., e Owen, D. G.: MacGillivray on…, cit., pp. 240-241).

Tal coloca, claro está, problemas desde logo na identificação de uma cláusula como “warranty”. Assim, no caso HIH Casualty & General Insurance Ltd vs New Hampshire Insurance Co. e outros, foram recenseados três critérios de identificação de uma “warranty”: o facto de a cláusula ser basilar na transacção, ser descritiva ou relevante para a materialidade do risco de perda, ou de a concessão de uma indemnização não ser um remédio adequado a afrontar a sua violação (como tal, a cláusula que previa que o segurado, num seguro de perdas pecuniárias ligadas à sua actividade de produtor de cinema, deveria realizar seis filmes num determinado arco temporal configurava uma “warranty”, já que, tanto aquele número era decisivo para a receita da produtora, como não era possível determinar em quanto a não realização de um dos filmes a afectaria).

Ora, tais dúvidas qualificatórias são tanto mais relevantes quanto, sendo as “warranties” o invólucro mais protectivo para o segurador, é esta a qualificação a que este procura acolher-se. Em caso de incumprimento, fica automaticamente exonerado para futuro: o contrato não cessa necessariamente, mas não brotam dele novos deveres de prestar do segurador, apenas se mantendo o direito aos prémios (Chalmers, M. D., e Owen, D.: The Marine Insurance Act, 1906, William Clowes and Sons, Londres, 1907, p. 49; jurisprudência The Good Luck; Birds, J.: Birds’ modern Insurance Law, Sweet and Maxwell, Londres, 2010, pp. 164 e ss.).

O “Marine Insurance Act” de 1906 ainda fornece o quadro geral de enquadramento das “warranties”, mesmo em sede de seguro terrestre, já que, ele próprio integrando os princípios que se haviam anteriormente estabelecido na common law a este respeito – e onde foi decisiva a intervenção de Lord Mansfield, de modo claro sobretudo a partir do caso De Hahn vs. Hartley, de 1786 –, entendeu-se que continua a conter os quadros da common law aplicável à generalidade dos contratos de seguro (Vance, W. R.: “History of the development of the warranty in Insurance Law”, Yale Law Journal, 1911, n.º 7, pp. 523-534, pp. 526 e ss.; Hare, J.: “The omnipotent”, cit., p. 44). Ora, o seguro marítimo corporiza um modelo em que o segurado é geralmente um agente económico de grandes dimensões, com grande saber técnico relativamente ao risco; mais ainda, o diploma encarna as valorações de uma época em que se via o segurador como o único sujeito desfavorecido pela assimetria informativa.

É bem ilustrativo desta compreensão o leading case a este respeito, De Hahn vs. Hartley, de 1786. Da apólice constava que o navio deveria sair do porto com pelo menos 50 membros na tripulação; o navio saiu com apenas 46, mas, umas horas depois de a viagem ter começado, sem que o navio chegasse a correr perigo relevante, engajou mais 6. Já na Costa de África, o navio viria a ser capturado e perdido. Face ao sinistro, o segurador invocou a violação da garantia, tendo-lhe o tribunal dado razão, considerando que as “warranties” deveriam ser cumpridas pontualmente, não sendo relevante se a sua violação era ou não relevante para o sinistro. Tal jurisprudência foi incorporada nas Secções 33, 3), e 34, 2), do “Marine Insurance Act”.

Herdeiro destas compreensões, o regime vigente consagra condições verdadeiramente draconianas de aplicação das “insurance warranties”. Permite-se ao segurador recusar a prestação, mesmo quando o incumprimento da “warranty” tenha sido entretanto reparado – por exemplo, o sistema de alarme não foi instalado logo aquando do contrato, mas foi-o depois – ou, na que já foi dita “one of the less attractive features of English insurance law” (Lord Griffiths em Forsikringsaktieselskapet Vesta & Ors, 1989) quando tal incumprimento não tenha qualquer relação causal com o sinistro. Por exemplo, quando, num seguro de recheio da casa, face ao sistema de alarme não instalado, aquela sofre danos decorrentes de cheias; ou quando, como no caso Forsikringsaktieselskapet Vesta & Ors, face à cobertura de danos causados por tempestade, a cláusula incumprida diga respeito ao dever de manter uma vigilância de 24 horas por dia das instalações (Merkin, R., e Lowry, J.: “Reconstructing Insurance”, cit., pp. 110-112; Legh-Jones, N., Birds, J., e Owen, D. G.: MacGillivray on…, cit., pp. 252 e ss.; cfr. ainda o Relatório de 2014, pp. 9 e 159-160). A falta de um requisito de relevância (“materiality”) da warranty para o risco ou para a perda foi, aliás, já a crítica centralmente tecida pela Law Commission, no Relatório de 1980 (Hare, J.: “The omnipotent” cit., p. 53).

As causas legítimas de não cumprimento são, por sua vez, muito estreitas, abarcando apenas as hipóteses em que, por alteração de circunstâncias, a conduta deixa de ser aplicável às circunstâncias do contrato ou se torna ilegal, ou aquelas em que o segurador renuncia ao seu direito a invocar a violação. Acresce que o entendimento dominante considera que estas cláusulas estão fora do escrutínio proporcionado pelas “Unfair Terms in Consumer Contracts Regulations”, de 1999, quer por se considerar que integram a definição do objecto negocial – preenchendo então a hipótese do Reg. 6(2)(a) desse diploma –, quer por concernirem à adequação do preço face ao serviço prestado – preenchendo então a hipótese do Reg. 6(2)(b) desse diploma (Rühl, G.: “Common Law, Civil Law, and the Single European Market for insurances”, International and Comparative Law Quarterly, 55, 2006, pp. 879-910, p. 902; Clarke, M. A., Burling, J. M., Purves, R. L.: The law of insurance contracts, Informa, Londres, 2009, 19-5A3, pp. 626-627).

Ora, esta tutela estrita dos termos pactuados colide com a compreensão hodierna de que um dos propósitos centrais do contrato de seguro é exactamente compensar os segurados face às consequências da falta de cuidado, “demasiado normal entre simples mortais” (Clarke, M.: “Insurance warranties: the absolute end?”, LMCLQ, 2007, pp. 474-493, p. 478; Relatório de 2014, p. 169).

Conquanto a jurisprudência tente suavizar estes rigores, acaba por fazê-lo de um modo errático. Tal ocorre desde logo através da mobilização da doutrina da interpretação contra proferentem em caso de dúvida sobre a natureza da cláusula, evitando-se então a qualificação como “warranty”. Por outro lado, os tribunais sempre invocam em casos limite parâmetros de relevância, considerando que a violação fica sem efeito se os factos previstos pela “warranty” forem triviais e não fundamentais para o risco – ao ponto de certa doutrina comparatista considerar que a jurisprudência não chega a resultados muito díspares dos que resultam do controlo da abusividade do clausulado e da aplicação do parâmetro da culpa no Direito alemão (Rühl, G.: “Common Law”, cit., pp. 903 e ss.; cfr. ainda Legh-Jones, N., Birds, J., e Owen, D. G.: MacGillivray on, cit., p. 255). Porém, a jurisprudência fá-lo com oscilações, que são bem ilustradas pela convocação de dois casos relativamente recentes. Assim, no caso Kler Knitwear Ltd v Lombard General Insurance Co Ltd., de 2000 – em que a inspecção do sistema de sprinklers a que o segurado deveria proceder a cada trinta dias foi feita apenas ao sexagésimo, verificando-se que estava tudo conforme, mas vindo posteriormente a fábrica em causa a sofrer danos por tempestade –, em que estava em causa uma cláusula claramente recortada como warranty, o tribunal qualificou-a como condição suspensiva da cobertura. No caso Sugar Hut Group Ltd v Great Lakes Reinsurance (UK) plc, de 2010, estava em causa, entre outras matérias, o incumprimento de uma disposição contratual que impunha a instalação de um determinado sistema de alarme anti-roubo; antes que o segurado tivesse instalado o sistema correcto, ocorreram danos por incêndio nas instalações. Neste caso, o tribunal considerou que a cláusula configurava uma verdadeira warranty, cujo incumprimento teria efeitos automáticos; apenas face a uma extensão do prazo para cumprimento da warranty posteriormente pactuada entre as partes, o tribunal veio a considerar um efeito suspensivo, atinente somente a esta ulterior extensão do prazo. Face a esta, uma vez que o sistema de alarme anti-roubo não se encontrava correctamente instalado no momento do fogo, a cobertura deveria ter-se por suspensa nesse momento.

Os riscos que para o segurado decorrem da severidade destes quadros de funcionamento são, pois, cumulados com os da falta de transparência, que decorre já da falta de linhas claras na identificação do que seja uma “warranty”. Assim, Clarke fala aqui de um “maze […] that even the most patriotic English lawyer does not enter with pleasure or pride” (Clarke, M.: “Warranties: the guaranteed”, cit., p. 597). E não surpreende que os segurados venham crescentemente substituindo o recurso aos tribunais, forçados a aplicar a common law, pelo recurso ao “Financial Ombudsman Service”, que pode decidir as queixas com base na equidade (“what is… fair and reasonable in all the circumstances of the case”, nos termos da Secção 228 do Financial Services and Markets Act, de 2000). A falta de transparência é especialmente sensível no tocante às “basis of the contract clauses” (cfr. o Relatório de 2014, pp. 10, 158, 175-177). Mediante a formulação de que o conteúdo de certa cláusula passa a integrar a base do contrato, esta passa a estar sujeita ao regime das “warranties”, independentemente do seu conteúdo. Assim, qualquer afastamento dos factos em relação à descrição constante da apólice, mesmo que nada tenha que ver com o grau de risco, constitui violação da garantia e fundamento para a recusa de prestação pelo segurador. O leading case é aqui o Dawsons Ltd v Bonnin (1922), em que estava em causa a mera declaração por erro de um local que era o da sede do segurado, e não aquele onde a viatura sobre a qual incidia o risco estava geralmente estacionada, vindo o segurado argumentar que tal não vinha aumentar o risco, mas mesmo possivelmente diminuí-lo (já que o local de estacionamento era nos arrabaldes de Glasgow, e não no seu centro, como declarado). Não obstante, o tribunal considerou que a cláusula, integrando a base do contrato, continha uma “warranty”, sendo todo o incumprimento exoneratório do segurador.

 

4. A regra que ficou a constar do “Insurance Act” proíbe simplesmente as “basis of the contract clauses”, valendo tal quer se trate de seguros celebrados com consumidores, quer com não consumidores (veja-se a Secção 9, 2) do “Insurance Act”, atinente às “warranties and representations”). No tocante ao regime das “warranties”, passa a prever-se que, quando a violação da exigência de conduta tiver sido reparada antes de surgir um direito à prestação, o segurador permanece obrigado a prestar (Secção 10, 5). A suspensão da cobertura enquanto dura o incumprimento substitui, pois, o automatismo da cessação da mesma que valia anteriormente (Relatório de 2014, p. 171). A exoneração só vale desde que o dano ou o seu facto causador ocorra no intervalo de tempo no qual o segurado está em incumprimento face à “warranty” (Secção, 10, 2) e 4). Assim, por exemplo, se o navio afunda numa zona de guerra, quando uma warranty determina que aí não há cobertura, é o dano a ocorrer nesse intervalo; se o navio apenas sofre aí o dano nos motores que o irá levar ao afundamento uma vez saído de tal zona, é a causa do dano a ocorrer nele. Em ambos os casos, há perda do direito à cobertura (Relatório de 2014, pp. 181-182).

Uma última limitação concerniu à adopção do requisito da relevância, patente na Secção, 11, 3), permitindo-se agora ao segurado demonstrar que o não cumprimento não poderia ter elevado o risco da perda que efectivamente ocorreu e nas circunstâncias em que ocorreu. Note-se que esta vale qualquer que seja a qualificação da cláusula, desde que tenha por escopo a redução do risco de perda de determinada natureza, em determinado tempo ou local – assim, não vale, por exemplo, para uma cláusula de delimitação espacial ou temporal da cobertura, ou para a “warranty” que respeite ao pagamento do prémio até determinada data (Soyer, B.: “Beginning of”, cit., p. 391).

Trata-se de uma disposição influenciada pelo art. 31. 06 da Lei nova iorquina sobre seguros, de cuja al. b) consta que “[a] breach  of  warranty shall not avoid an insurance contract or defeat recovery thereunder unless such breach materially  increases  the risk  of  loss, damage or injury within the coverage of the contract. If the insurance contract specified two or more distinct  kinds  of  loss, damage  or  injury  which  are within its coverage, a breach of warranty shall not avoid such contract or defeat recovery thereunder with respect to any kind or kinds of loss, damage or injury other than  the  kind  or kinds to which such warranty relates and the risk of which is materially increased by the breach of such warranty”. O segurador permanece, pois, vinculado quando a exigência de conduta em causa não tenha por escopo a prevenção do tipo de perda emergente do sinistro. Note-se que não se trata aqui de um teste de causalidade, mas apenas de conexão do risco: trata-se apenas de saber se o cumprimento poderia ter diminuído as hipóteses de concretização daquele tipo de risco, sendo irrelevante saber se efectivamente o causou (Relatório de 2014, pp. 194-198). É enfático o exemplo dado a propósito de um seguro contra danos provocados por actos ilícitos dos empregados (fidelity policy): se não foram dadas referências quanto ao trabalhador A e se o trabalhador B se apropria de bens da empresa, tem-se a cláusula por incumprida, já que foi o tipo de risco em causa que se concretizou (Soyer, B.: “Beginning of”, cit., pp. 393-394). Tratando-se de um teste de pendor abstracto, o seu estabelecimento presta-se menos à dúvida do que ocorre face a um genuíno teste de causalidade – cumprindo-se por esta via finalidades de política legislativa atinentes ao controlo da litigiosidade.

O novo regime não é, porém, isento de normas de difícil concretização, que poderão fundar a contestação de decisões de não cobertura – é, desde logo, o caso da demarcação entre as cláusulas de pura delimitação do risco coberto, que aqui não seriam objecto do teste de relevância, e as cláusulas que impõem acções de controlo do risco (vg., uma cláusula que determine que o veículo em causa seja mantido em boas condições de funcionamento). Testemunha tal dificuldade, aliás, a presença de debate semelhante em várias outras ordens jurídicas, com especial destaque para a alemã, onde a demarcação entre as cláusulas que acolhem exigências de conduta e as que recortam negativamente o risco coberto é tida como um dos campos problemáticos mais difíceis do Direito do contrato de seguro, e ainda não satisfatoriamente resolvido (Wandt, M. “VVG § 28 Verletzung einer vertraglichen Obliegenheit”, Münchener Kommentar VVG, I,  coord. por T. Langheid e M. Wandt, C. H. Beck, Munique,  2010, nm. 46 e 63). Perante o protagonismo dado na ordem jurídica inglesa a uma interpretação textual do contrato nesta matéria, tal fonte de litígios poderá ser limitada por um redobrado cuidado na redacção das cláusulas, condicionando-se expressamente a vigência da cobertura a tal estado ou tais características. Por outro lado, a redacção em termos amplos de cláusulas ligadas ao controlo do risco, que na verdade as associe ao controlo de diferentes tipos de riscos, poderá reabrir o debate da causalidade.

O regime em causa é semi-imperativo no que tange os contratos com consumidores (Secção 15, 1) e, no tocante apenas à Secção 9 (abrangendo, como vimos, a referência às “basis of the contract clauses”), é-o também em relação a seguros com não consumidores (Secção 16, 1).

Desta perspectiva em voo de pássaro resulta uma assinalável diferença face a um sistema como o germânico ou o acolhido pelos PEDCS: a da irrelevância da culpa para retirar efeitos da violação destas cláusulas relativas ao risco (Hellwege, P.: “Obliegenheiten im Versicherungsvertragsrecht aus historisch-vergleichender Perspektive”, RabelsZ, 76, 2012, pp. 864-892, pp. 871-872).

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