A união estável no Direito privado brasileiro

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Autor: Nelson Rosenwald, Fiscal y Presidente del Instituto Brasileño de Estudios de Responsabilidad Civil. Correo electrónico: nelson.rosenvald@me.com

Resumen: A partir do § 3º do art. 226 da Constituição Federal de 1988 é possível visualizar a união estável, também chamada de companheirismo, como uma situação de fato existente entre duas pessoas, de sexos diferentes e desimpedidas para casar, que vivem juntas, como se casadas fossem caracterizando uma entidade familiar. O legislador absteve-se de conceituar rigidamente a união estável, deixando para o juiz – diante de cada caso concreto – a tarefa de analisá-la e reconhecê-la ou não. Logo, trata-se de uma situação fática, estabelecendo um vínculo afetivo entre pessoas, com intenção de viver como se casadas fossem. Companheiro é a expressão consagrada no Código Civil para designar o sujeito da união estável, expurgando o preconceito que a palavra concubinato trazia consigo. a união estável está submetida a alguns elementos essenciais: (i) diversidade de sexos; (ii) estabilidade; (iii) publicidade; (iv) continuidade; (v) ausência de impedimentos matrimoniais. Esses cinco elementos precisam estar conectados a um elemento principal, que é o ânimo de constituir família (convivência more uxorio). A união estável irradia suas consequências em diferentes campos, projetando-se nas relações patrimoniais, de índole econômica, e também nas relações pessoais, domiciliadas no âmbito interno da relação mantida pelo casal e em muito se assemelham aos efeitos do casamento. Apesar das distinções com o matrimônio, não apenas é possível a conversão da união estável em casamento, como, considerada a possibilidade de caracterização de uniões estáveis homoafetivas, a possibilidade efetiva de conversão de união estável homoafetiva em casamento.

Palabras clave: união estável; casamento; direito civil brasileiro; uniões homoafetivas; direitos fundamentais; dignidade; pluralismo

Abstract: From the 3rd paragraph of art. 226 of the Federal Constitution of 1988, it is possible to visualize the “União Estável” (cohabitation), also called common-law marriage, as a fact existing between two people, of different sexes and free to marry, living together, as if married were characterizing a family entity. The lawmaker refrained from conceptualizing rigidly the cohabitation, leaving to the judge – in each concrete case – the task of analyzing it and recognizing it or not. Therefore, it is a factual situation, establishing an affective bond between a couple, intending to live as if they were married. Cohabitants is the expression consecrated in the Civil Code to designate the subject of the cohabitation, eliminating the prejudice that the word “concubinato” brought with it. the stable union is subject to some essential elements: (i) gender diversity; (ii) stability; (iii) publicity; (iv) continuity; (v) absence of marital impediments. These five elements need to be connected to a main element, which is the spirit of constituting family (coexistence more uxorio). Cohabitation expands its consequences in different fields, projecting itself in the patrimonial relations, of economic nature, and also in the personal relations, domiciled in the internal scope of the relation maintained by the couple and very much resemble the effects of the marriage. In spite of the distinctions with marriage, not only is it possible to convert a cohabitation into a marriage, but also to consider the possibility of characterizing homosexual unions as cohabitations for legal effects.

Key words: cohabitation; marriage; Brazilian private law; fundamental rights; dignity; pluralism.

Sumario:
I. Introdução.
II. Escorço histórico: a união estável na lente da jurisprudência brasileira.
III. A união estável, o concubinato e a sociedade de fato: distinções necessárias.
1. A união livre e a sociedade de fato.
2. O concubinato, o seu tratamento jurídico e as vedações do sistema legal: inadmissibilidade de simultaneidade de núcleos familiares pelo sistema jurídico.
3. A união estável.
4. O poliamorismo e a possibilidade de caracterização de uma união estável putativa.
IV. Elementos caracterizadores da união estável.
1. Noções gerais.
2. O intuito familiae (ânimo de constituir uma família).
3. A questão da dualidade de sexos e as uniões de pessoas do mesmo sexo (as uniões homoafetivas).
4. A estabilidade.
5. A continuidade.
6. A publicidade.
7. A ausência de impedimentos matrimoniais e não incidência das causas suspensivas.
8. A união estável putativa e a possibilidade excepcional de simultaneidade de núcleos familiares.
V. Efeitos pessoais da união estável.
1. As relações pessoais entre os companheiros.
2. Os deveres recíprocos entre os companheiros e a dispensa da coabitação.
3. Direito ao uso do sobrenome do companheiro.
4. Estabelecimento de vínculo de parentesco por afinidade.
5. Adoção por companheiros.
6. Exercício da curatela pelo companheiro na ação de interdição e na ação declaratória de ausência.
7. Sub-rogação e retomada na locação de imóvel urbano.
8. A questão da indenização por descumprimento dos deveres pessoais entre os companheiros (a responsabilidade civil na união estável).
9. Impedimento para testemunhar.
VI. Efeitos patrimoniais.
1. As consequências econômicas da união estável.
2. O regime de bens e o direito à meação.
3. O contrato de convivência na união estável e seus efeitos.
A) Contornos gerais do contrato de convivência.
B) Celebração do contrato de convivência e modificabilidade.
C) Eficácia do pacto convivencial.
D) Conteúdo.
E) O contrato de namoro e seus efeitos sobre a união estável.
F) O contrato de convivência e os companheiros sócios.
4. Alimentos na união estável.
5. Direito aos benefícios previdenciários.
6. Efeitos tributários.
7. Impenhorabilidade do bem de família.
VII. Conversão da união estável em casamento.
VIII. Aspectos processuais da união estável.
IX. Ações típicas da união estável.
X. Conclusão.

Referencia: Actualidad Jurídica Iberoamericana Nº 11, agosto 2019, ISSN: 2386-4567, pp. 224-265.

Revista indexada en SCOPUS, REDIB, ANVUR, LATINDEX, CIRC y MIAR; e incluida en los siguientes catálogos: Dialnet, RODERIC, Red de Bibliotecas Universitarias (REBIUN), Ulrich’s y Dulcinea.

  1. INTRODUÇÃO.

A Constituição Federal do Brasil de 1988 atribui especial proteção do Estado à família (inclusive àquela não fundada no matrimônio), deixando antever o seu importantíssimo papel na promoção da dignidade da pessoa humana. É que partindo de uma concepção instrumentalista da família, é possível afirmar que a tutela jurídica dedicada à família não se justifica em si mesma. Isto é, não se protege a família por si mesma, mas para que, através dela, sejam tuteladas as pessoas que a compõem. Por isso, a união estável assume especial papel na sociedade contemporânea, pois possibilita compreender o caráter instrumental da família, permitindo que se efetive o ideal constitucional de que a família (seja ela qual for, casamentária ou não) tenha especial proteção do Estado.

O que se deve proclamar é a especial proteção da vida em comum, através de uniões sem formalidades, com o propósito de proteger qualquer modo de constituição de família, independentemente de sua origem. Ora, seja o casamento, seja a união estável, seja qualquer outro modelo de família, é certo que toda e qualquer entidade familiar está, sempre, fundada na mesma base sólida: o afeto. E não se justifica, por certo, discriminar realidades idênticas – todas lastreadas no amor e na solidariedade recíproca, com vistas à realização plena dos seus componentes.

Não é crível, nem admissível, que as pessoas sejam obrigadas a casar somente para adquirir mais direitos. A opção pelo casamento, pela união estável, ou, seja lá pelo que for, não pode implicar na aquisição de mais ou menos garantias jurídicas. E não se argumente, sequer, como tentam alguns, que se justificaria o tratamento inferior à união estável com base no § 3º do Texto Maior, ao estabelecer que a lei facilitará a conversão da união estável em casamento. Efetivamente, o espírito da norma constitucional não é, a toda evidência, estabelecer graus de importância nos núcleos familiares. O constituinte almejou, tão somente, tornar menos solene e complexo o matrimônio daquelas pessoas que, anteriormente, já conviviam maritalmente, como se casados fossem. Só isso.

  1. Escorço histórico: a união estável na lente da jurisprudência brasileira.

O revogado Código Civil de 1916 somente reconhecia o casamento como entidade familiar, nem sequer admitindo a existência de uniões extramatrimonializadas. Naquela ambientação, o casamento era a única forma de constituição da chamada “família legítima”, sendo, portanto, “ilegítima” toda e qualquer outra forma familiar, ainda que marcada pelo afeto.

Todavia, considerando que o casamento tinha caráter indissolúvel, não raro, diversas pessoas – inclusive aquelas cujo casamento terminava de fato, mas não de direito – viviam maritalmente com alguém, mas optando por não casar ou, de outro modo, não podendo casar. Essas pessoas passaram a viver em entidades que foram intituladas como concubinato.

Concubinato significava, em rápidas linhas, união entre homem e mulher sem casamento, seja porque eles não poderiam casar, seja porque não pretendiam casar. De qualquer modo, é preciso deixar claro que o concubinato não produzia efeitos no âmbito do Direito das Famílias, mas, apenas, no campo do Direito Obrigacional, por ser estranho ao conceito de família. Era a chamada “sociedade de fato”.

Provocadas as Cortes, o Supremo Tribunal Federal (que, naquela época, antes da Constituição Federal de 1988, detinha competência para tanto), então, cumprindo um papel visivelmente construtivo, editou duas súmulas reconhecendo algum tipo de proteção às pessoas que viviam concubinariamente, fora do matrimônio. A Súmula 380 dispõe: “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”. A outro giro, a Súmula 382, por seu turno, reza: “A vida em comum sob o mesmo teto, more uxorio, não é indispensável à caracterização do concubinato”.

Não só. Considerando que os concubinos não faziam jus aos alimentos, uma vez que a relação não tinha natureza familiar, a jurisprudência brasileira, inspirada no entendimento acolhido pelos tribunais franceses, passou a reconhecer-lhes o direito a uma indenização por serviços domésticos (caseiros, tais como lavar, passar, cozinhar etc.) e sexuais prestados. Vale a pena transcrever a ementa de interessante aresto da Corte Maior, para ilustrar a matéria:

“A sociedade de fato e não a convivência more uxório é o que legitima a partilha de bens entre os concubinos, julgado que nega a existência de sociedade entre os concubinos, face a prova dos autos, não discrepa da Súmula 380. RE não conhecido. Súmula 279. A jurisprudência tem admitido, em casos especiais, serem indenizáveis os serviços prestados pela concubina ao amásio durante o período de vida em comum, desde que demonstrados, pois quem pede o mais, pede o menos. Provido o segundo recurso, em parte, para assegurar a indenização dos serviços domésticos e de natureza social com reflexos comerciais, prestados pela concubina em favor do amasio, conforme se apurar em execução” (STF, Ac. 2ª T., RE 84969/RJ, Rel. Min. Cordeiro Guerra, j. 29.10.1976, DJU 13.12.1976).

A firme posição dos Tribunais chegou mesmo a influenciar o legislador, fazendo com que fossem editadas normas legais reconhecendo o concubinato. Nesse sentido, é possível lembrar a Lei nº 6.367/75, bem como o Decreto-lei nº 7.036/44, que reconheciam ao concubino o direito ao recebimento de indenização por acidente de trabalho com o seu convivente. Aliás, a matéria restou de tal modo pacificada que o Supremo Tribunal Federal cimentou entendimento na Súmula 35, confirmando a legitimidade da concubina para o recebimento da referida indenização. Por igual, não é demais lembrar que o art. 57, §§ 2º a 6º, da Lei nº 6.015/73 – Lei de Registros Públicos, na mesma trilha, reconheceu o direito ao uso do sobrenome (nome patronímico) pela concubina.

Naquele desenho, a doutrina se encarregou de diferençar o concubinato em duas categorias: (i) o concubinato puro (composto por pessoas que poderiam casar, mas preferiam não fazê-lo); (ii) o concubinato impuro (formado por pessoas que não poderiam casar, como, por exemplo, as pessoas casadas, caracterizando o típico e conhecido exemplo das “amantes”. Era o concubinato adulterino ou incestuoso).

Finalmente, com o advento da Constituição da República, propiciamente apelidada de “Constituição-cidadã”, o velho concubinato foi elevado à altitude de entidade familiar, passando a se submeter à normatividade do Direito das Famílias e, principalmente, ganhando especial proteção do Estado – a mesma dispensada ao casamento. O nome do instituto foi mudado visando retirar o estigma da dupla conotação trazida pela palavra concubinato. União estável foi a nova terminologia empregada para indicar as relações afetivas decorrentes da convivência entre homem e mulher, com o intuito de constituir família, mas despida das formalidades exigidas para o casamento.

Na sequência do Texto Constitucional, foi editada a Lei nº 8.971/94, que veio a disciplinar o direito dos companheiros aos alimentos e à sucessão, impondo como requisitos para a configuração da união estável que os companheiros fossem solteiros, divorciados ou viúvos e que houvesse uma convivência mínima de cinco anos ou a existência de prole.

Já em 1996, a Lei nº 9.278/96, também visando regular a união estável, mas não ab-rogando a lei anterior, extirpou os requisitos acima mencionados, passando a considerar a união estável como a entidade familiar de convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família, afastando, de uma vez por todas, a exigência temporal.

Tutelou-se, desse modo, em sede constitucional, o antigo concubinato puro, protegido, agora, como uma entidade familiar e submetido a uma nova terminologia, abandonando a nomenclatura estigmatizada e preconceituosa. Com isso, o velho concubinato impuro (agora designado, simplesmente, de concubinato) se manteve enquadrado no âmbito do Direito das Obrigações, não produzindo, segundo entendimento prevalecente na doutrina e na jurisprudência, efeitos jurídicos familiares (direito aos alimentos, à herança, à habitação, ao estabelecimento do parentesco por afinidade, etc.), como, inclusive, estabelece o art. 1.727 do Estatuto do Cidadão.

Palmilhando as sendas abertas pelo legislador, a jurisprudência dos Tribunais Superiores passou a recrudescer o tratamento jurídico do concubinato. O único efeito jurídico reconhecido em favor da concubina, atualmente, é o direito à partilha do patrimônio adquirido, desde que provado o esforço comum. Veja-se a mais recente orientação daquela Corte Superior:

“Inviável a concessão de indenização à concubina, que mantivera relacionamento com homem casado, uma vez que tal providência eleva o concubinato a nível de proteção mais sofisticado que o existente no casamento e na união estável, tendo em vista que nessas uniões não se há falar em indenização por serviços domésticos prestados, porque, verdadeiramente, de serviços domésticos não se cogita, senão de uma contribuição mútua para o bom funcionamento do lar, cujos benefícios ambos experimentam ainda na constância da união. […] 3. Na verdade, conceder a indigitada indenização consubstanciaria um atalho para se atingir os bens da família legítima, providência rechaçada por doutrina e jurisprudência. 4. Com efeito, por qualquer ângulo que se analise a questão, a concessão de indenizações nessas hipóteses testilha com a própria lógica jurídica adotada pelo Código Civil de 2002, protetiva do patrimônio familiar, dado que a família é a base da sociedade e recebe especial proteção do Estado (art. 226 da CF/88), não podendo o Direito conter o germe da destruição da própria família” (STJ, Ac. Unân., 4ª T., REsp 988.090/MS, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, j. 2.2.2010, DJe 22.2.2010).

III. A união estável, o concubinato e a sociedade de fato: distinções necessárias.

1 A união livre e a sociedade de fato.

Utiliza-se a expressão união livre para designar as relações mantidas entre pessoas que, não sendo casadas entre si e não convivendo maritalmente, sem formalidades, mas com intenção de constituir família, mantêm uma comunhão afetiva. É o exemplo tão evidente do namoro ou mesmo do noivado. É importante observar que essas uniões livres são desprovidas de efeitos de ordem familiar (TJ/RS, Ac. 7ª Câm. Cív., Ap. Cív. 70001533512, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 22.11.2000).

Não se pode olvidar, entretanto, que de uma união livre, seja ela afetiva ou não, é possível decorrer a formação de uma sociedade de fato, quando as partes envolvidas adquirem, por esforço comum, patrimônio, impondo, assim, o dever de partilha dos bens adquiridos, a título oneroso. Seria o exemplo de namorados que, em conjunto, resolvem prestar serviços no mercado informal. Na hipótese, haverá uma sociedade de fato, com potencialidade de projeção de efeitos patrimoniais.

E, bem por isso, sempre que, em qualquer tipo de união livre, houver aquisição de patrimônio por colaboração recíproca, caberá a ação de dissolução de sociedade de fato, a ser ajuizada em vara cível, afastada, efetivamente, a competência da vara especializada de família.

2 O concubinato, o seu tratamento jurídico e as vedações do sistema legal: inadmissibilidade de simultaneidade de núcleos familiares pelo sistema jurídico.

Com o advento do libertário e solidário Texto Constitucional, o termo concubinato passou a designar, tão somente, a figura impura, pois o antigo concubinato puro passou a ser chamado de união estável. Como já dito, o Código Civil, na redação do seu art. 1.727, consagrou, efetivamente, a distinção conceitual entre concubinato e união estável, afastando os dois institutos e reconhecendo, como entidade familiar, tão somente, este último. Assim, o concubinato é a relação, não familiar, entre pessoas que não podem casar, em razão de algum impedimento matrimonial (STJ, Ac. 4ª T., REsp. 684.407-0/RS, Rel. Min. Jorge Scartezzini, j. 3.5.2005, DJU 27.6.2005, p. 411).

O tratamento jurídico do concubinato como mera sociedade de fato tem como fundamento, ainda, o caráter monogâmico da relação familiar. Por isso, entende-se, em sede normativa e jurisprudencial, que conferir proteção ao concubinato em sede familiarista implicaria, por vias transversas, em quebrar a monogamia em sua própria essência. E, assim, a norma legal e o entendimento jurisprudencial superior repugna o reconhecimento de uniões familiares simultâneas ou paralelas.

“Uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a monogamia não pode atenuar o dever de fidelidade – que integra o conceito de lealdade – para o fim de inserir no âmbito do Direito de Família relações afetivas paralelas e, por consequência, desleais, sem descurar que o núcleo familiar contemporâneo tem como escopo a busca da realização de seus integrantes, vale dizer, a busca da felicidade. (…). Emprestar aos novos arranjos familiares, de uma forma linear, os efeitos jurídicos inerentes à união estável, implicaria julgar contra o que dispõe a lei; isso porque o art. 1.727 do CC/02 regulou, em sua esfera de abrangência, as relações afetivas não eventuais em que se fazem presentes impedimentos para casar, de forma que só podem constituir concubinato os relacionamentos paralelos a casamento ou união estável pré e coexistente. Recurso especial provido” (STJ, Ac. Unân., 3ª T., REsp. 1.157.273/RN, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 18.5.2010, DJe 7.6.2010).

Todavia, é importante ter em mente a possibilidade de produção de efeitos jurídicos entre os concubinos. Tais consequências, insista-se à exaustão, se projetam no campo obrigacional, afastadas do Direito das Famílias. Por óbvio, a decorrência de efeitos patrimoniais do concubinato depende da prova efetiva pelo interessado da existência de colaboração recíproca e da aquisição patrimonial e será possível mesmo quando um dos concubinos é casado e convive com o seu cônjuge (STJ, Ac. 4ª T., REsp. 257.115/RJ, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 29.6.2004, DJU 4.10.2004).

A outro giro, vale encalamistrar que o direito brasileiro estabelece a vedação da prática dos seguintes atos em favor da concubina ou do concubino: (i) proibição de realizar doação em favor do concubino, sob pena de anulabilidade, no prazo de dois anos contados do término da relação conjugal (CC, art. 550); (ii) proibição de estipular seguro de vida em favor de concubino, sob pena de nulidade (CC, art. 793); (iii) proibição de ser contemplado como beneficiário de testamento, seja a título de herança ou de legado, sob pena de nulidade (CC, art. 1.801, III); (iv) impossibilidade de receber alimentos (CC, art. 1.694).

É importante observar que todas essas vedações restringem-se, apenas, ao concubinato (impuro), não se aplicando, logicamente, à união estável. De qualquer sorte, é preciso uma visão mais atualizada das referidas normas, que, sem dúvida, estão apegadas a conceitos morais já superados e, de certo modo, contestáveis. Não se perca de vista, inclusive, que tais vedações podem estar, inclusive, em rota de colisão com a consagrada autonomia da vontade, marca registrada do Direito Civil, pois impede que o titular do patrimônio disponha de sua cota disponível.

“União dúplice. União estável. Prova. Meação. Triação. Sucessão. Prova do período de união estável e união dúplice. A prova dos autos é robusta e firme a demonstrar a existência de união entre a autora e o de cujus em período concomitante ao casamento do falecido. Reconhecimento de união dúplice paralela ao casamento. Precedentes jurisprudenciais. Meação (triação) Os bens adquiridos na constância da união dúplice são partilhados entre as companheiras e o de cujus. Meação que se transmuda em ‘triação’, pela duplicidade de vínculos familiares” (TJ/RS, Ac. 8ª Câm. Cív., Ap. Cív. 70027512763 – Comarca de Erechim, Rel. Des. Rui Portanova, j. 14.5.2009, DJRS 2.6.2009).

  1. A união estável.

A partir do § 3º do art. 226 da Carta Cidadã de 1988 é possível visualizar a união estável, também chamada de companheirismo, como uma situação de fato existente entre duas pessoas, de sexos diferentes e desimpedidas para casar, que vivem juntas, como se casadas fossem (convivência more uxorio), caracterizando uma entidade familiar.

Consoante a feliz percepção da professora catarinense Patrícia Fontanella, percebe-se, facilmente, que “o legislador optou por evitar rigorismos conceituais, pois ao abster-se de conceituar rigidamente a união estável, deixou para o juiz – diante de cada caso concreto – a tarefa de analisá-la e reconhecê-la ou não”. Logo, trata-se de uma situação fática, estabelecendo um vínculo afetivo entre pessoas, com intenção de viver como se casadas fossem. Companheiro é a expressão consagrada no Código Civil para designar o sujeito da união estável, expurgando o preconceito que a palavra concubinato trazia consigo. Lembre-se, demais disso, que, em sede doutrinária, também se utiliza a expressão convivente para designar o companheiro.

Repita-se, à saciedade, que, conquanto esteja impedida de casar, a pessoa casada, mas separada de fato, já poderá constituir união estável, como reza o § 1º do art. 1.723 do Código Civil, tendo em mira, acertadamente, que a falta de convivência na relação casamentária faz cessar a sua caracterização fundamental, que é a afetividade. Nasce a união estável, destarte, de um simples fato jurídico (a convivência duradoura com intuitu familiae), produzindo efeitos jurídicos típicos de uma relação familiar, distinguindo-se do casamento, apenas e tão somente, pela inexistência de formalidades legais e obtendo a mesma proteção que for dispensada a qualquer outro núcleo familiar.

  1. O poliamorismo e a possibilidade de caracterização de uma união estável putativa.

Conceitualmente, poliamor significa, em acepção gramatical, “muitos amores”. O seu significado concreto, todavia, é mais expansivo. Cuida-se, em verdade, de “um modo de vida”, pelo qual é reconhecida “a possibilidade de estar envolvido em relações íntimas e profundas com várias pessoas ao mesmo tempo, no mesmo nível de importância”, conforme a explicação da psicanalista Regina Navarro Lins.

Salta aos olhos, portanto, que a relação poliamorista está, juridicamente, baseada na boa-fé (objetiva), caracterizada pelo comportamento ético, respeitoso, entre as partes envolvidas. Por isso, entendemos que, presentes os requisitos caracterizadores exigidos pelo art. 1.723 do Código Civil, a relação de poliamor pode ser reputada uma união estável putativa, com a produção de todos os efeitos entre os envolvidos. Considerada, inclusive, a boa-fé de todos os envolvidos, não haveria um critério para deferir direitos a uma das pessoas negar à outra.

Muitas das pessoas que vivem em poliamorismo se valem de escrituras públicas, lavradas em cartório, para manifestar a convivência e a intenção de viver em uma relação familiar. Efetivamente, as aludidas declarações servem como indiscutível meio de prova para a caracterização da união estável, a partir da demonstração dos seus elementos. Ora, as partes envolvidas estabelecem uma relação de afetividade, com absoluta integração fisio-psicológica permanente. Dessa maneira, há de se reconhecer uma possibilidade de caracterização de uma entidade familiar nesse caso, com a incidência do regramento da união estável.

  1. Elementos caracterizadores da união estável.
  2. Noções gerais.

Considerada a ausência de formalidades na constituição de uma família convivencial, percebe-se a premente necessidade de vislumbrar os seus elementos fundantes, até mesmo para que possa surtir os seus regulares efeitos, a partir das latitudes do art. 226 da Constituição, especificamente de seu § 3º, e do art. 1.723 do Código Civil.

Afirma a norma constitucional (art. 226, § 3º): “Para efeito da proteção do Estado é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Por seu turno, o Estatuto Civil, igualmente, reconhece “como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”. Já em seu § 1º, dispõe que “a união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente”, enquanto no § 2º informa que “as causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável”.

Confrontando tais dispositivos, infere-se, com tranquilidade, que a união estável está submetida a alguns elementos essenciais: (i) diversidade de sexos; (ii) estabilidade; (iii) publicidade; (iv) continuidade; (v) ausência de impedimentos matrimoniais. É bem verdade que esses elementos, necessariamente, precisam estar conectados a um elemento principal, que é o ânimo de constituir família, isto é, a intenção de estar vivendo como se casados fossem (a chamada convivência more uxorio). É possível perceber, inclusive, que a intenção de estar convivendo como se casados fossem apresenta-se como elemento principal, fundamental para a caracterização da entidade familiar. Os demais, assim, podem ser compreendidos de forma acessória, pois a presença deles, sem o animus familiae, não implicará no reconhecimento de uma união estável.

Nessa linha de ideias, percebe-se, com clareza solar, não serem elementos exigidos para a união estável a exigência de um lapso temporal mínimo de relacionamento e a convivência sob o mesmo teto. Assim, é possível a sua caracterização independentemente de um prazo de convivência e mesmo que os conviventes estejam morando em casas separadas. Nesse sentido, a Súmula 382 do Supremo Tribunal Federal consagra que “a vida em comum sob o mesmo teto more uxorio, não é indispensável à caracterização do concubinato”. Veja-se ilustrativamente:

“Não exige a lei específica a coabitação como requisito essencial para caracterizar a união estável. Na realidade, a convivência sob o mesmo teto pode ser um dos fundamentos a demonstrar a relação comum, mas a sua ausência não afasta, de imediato, a existência da união estável” (STJ, Ac. Unân., 4ª T. REsp. 474.962/SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 23.9.2003, DJU 1.3.2004, p. 186, RBDFam 23: 93).

  1. O intuito familiae (ânimo de constituir uma família).

Sem dúvida, é fundamental para a caracterização da união estável a existência de uma comunhão de vidas no sentido material e imaterial, em correspondência e similitude ao casamento. É uma troca de afetos e uma soma de objetivos comuns, de diferentes ordens, solidificando o caráter familiar da relação. Trata-se, efetivamente, da firme intenção de viver como se casados fossem.

Nesse passo, é o intuito familiae, também chamado de affectio maritalis, que distingue a união estável de outras figuras afins, como, por exemplo, um namoro prolongado, afinal os namorados não convivem como se estivessem enlaçados pelo matrimônio. Também aparta a união estável de um noivado, pois neste as partes querem, um dia, estar casadas, enquanto naquela os companheiros já vivem como casados. Nesse passo, mesmo que presentes, eventualmente, em um namoro ou em um noivado, algum, ou alguns requisitos caracterizadores da união estável, sendo ausente o ânimo de estar vivendo uma relação nupcial, como se casados fossem, não se caracterizará a entidade familiar e, via de consequência, não decorrerão efeitos pessoais ou patrimoniais. Há precedente nesse diapasão: O namoro prolongado, mesmo com congresso íntimo, desenrolando enquanto as partes resolviam anteriores casamentos, não induz união estável (TJ/RS, Ac. 7ª Câm. Cív., Ap. Cív. 599.152.105, Rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis, j. 12.5.1999).

  1. A questão da dualidade de sexos e as uniões de pessoas do mesmo sexo (as uniões homoafetivas).

A exigência da diversidade de sexos (CF, art. 226, § 3º) apresentava-se conectada a padrões morais de outros tempos, argumentando parte da doutrina que decorreria da impossibilidade de os homossexuais assumirem, concomitantemente, o papel de pai e mãe em uma relação familiar.

Efetivamente não era razoável. Até porque a aludida interpretação se mostrava incompatível com o Texto Constitucional como um todo: garantista, humanista, igualitário e promotor das liberdades individuais. Bem por isso, não se poderia admitir uma interpretação restritiva dos elementos caracterizadores da união estável. Até porque, seja heteroafetiva, ou seja homoafetiva, a união estável tem a mesma base fundante, se apresentando como uma relação de afeto e de solidariedade.

Outrossim, não se pode olvidar que mesmo os casais homossexuais poderão, eventualmente, experimentar a paternidade/maternidade, através das técnicas de reprodução assistida e da adoção. A outro giro, também não se pode submeter a caracterização de família à decorrência de prole, uma vez que o planejamento familiar é opção do casal, garantida constitucionalmente, não se descaracterizando uma família somente pela inexistência de filhos.

Exatamente lastreado nesses argumentos, o Supremo Tribunal Federal, em histórico julgamento por unanimidade, determinou, em controle de constitucionalidade concentrado (portanto, com efeitos vinculantes), que se promova uma interpretação conforme a Constituição do caput do art. 1.723 da Codificação de 2002, para se admitir a caracterização de uma união estável entre pessoas de sexos distintos ou do mesmo sexo (hetero ou homoafetiva), reconhecendo-lhes todos os efeitos (pessoais e patrimoniais) decorrentes de uma entidade familiar:

“(…) O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão família, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por ‘intimidade e vida privada’ (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas.

(…) A referência constitucional à dualidade básica homem/mulher, no § 3º do seu art. 226, deve-se ao centrado intuito de não se perder a menor oportunidade para favorecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia no âmbito das sociedades domésticas. Reforço normativo a um mais eficiente combate à renitência patriarcal dos costumes brasileiros. Impossibilidade de uso da letra da Constituição para ressuscitar o art. 175 da Carta de 1967/1969. Não há como fazer rolar a cabeça do art. 226 no patíbulo do seu parágrafo terceiro. Dispositivo que, ao utilizar da terminologia entidade familiar, não pretendeu diferenciá-la da família. Inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico. Emprego do fraseado entidade familiar como sinônimo perfeito de família. A Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo. Consagração do juízo de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um legítimo interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na hipótese sub judice. Inexistência do direito dos indivíduos heteroafetivos à sua não equiparação jurídica com os indivíduos homoafetivos. Aplicabilidade do § 2º do art. 5º da Constituição Federal, a evidenciar que outros direitos e garantias, não expressamente listados na Constituição, emergem ‘do regime e dos princípios por ela adotados’, verbis: ‘os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte’[…] Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva” (STF, Ac. Unân., Tribunal Pleno, ADIn 4277/DF, Rel. Min. Carlos Ayres Britto, j. 5.5.2011, DJe 14.10.2011).

Com essa compreensão, infere-se que a união estável homoafetiva produz todos os efeitos de uma união estável heteroafetiva, seja no âmbito existencial, seja na esfera patrimonial. Aliás, admite-se, inclusive, a possibilidade de sua conversão em casamento, conforme reconhecido pela Corte Superior de Justiça (STJ, Ac. 4ª T., REsp. 1.183.378/RS, Rel. Min. Luís Felipe Salomão).

  1. A estabilidade.

Decorre da própria nomenclatura abraçada constitucionalmente que a família convivencial exige um caráter estável, uma duração prolongada no tempo. Impõe-se, assim, à relação entre os companheiros uma feição não acidental, não momentânea.

Por óbvio, convém rechaçar, de logo, que a durabilidade esteja conectada à exigência de algum lapso temporal mínimo. Não se exige, como visto alhures, prazo mínimo de convivência, dependendo a caracterização da união estável das circunstâncias concretas de cada caso.

  1. A continuidade.

A própria noção de estabilidade traz consigo a necessidade de continuidade da relação amorosa. Evidentemente, não se fala em continuidade no sentido de perpetuidade, mas sim como elemento de verificação da solidez do vínculo.

É certo, nessa ordem de ideias, que eventuais desentendimentos e conflitos pessoais são naturais na vida em comum (e fora dela, também). E mais, essa desavença pode ser seguida de uma breve ruptura, desembocando, não raro, em uma (festejada) reconciliação do casal. Pois bem, situações tais não implicam na perda do caráter contínuo exigido legalmente para a caracterização da união convivencial. O que deteriora o vínculo afetivo é a ruptura séria, quebrando a base objetiva (que é a convivência) e subjetiva (a intenção de continuar compromissado a outra pessoa) do relacionamento.

  1. A publicidade.

Para que exista a união estável é necessário que a relação afetiva seja pública – no sentido de notoriedade, de não clandestinidade. Ou seja, é preciso que os conviventes mantenham um comportamento notório, apresentando-se aos olhos de todos como se casados fossem. Nas uniões familiares, é natural que o par não se esconda do meio social, mantendo o respeito recíproco e a convivência em qualquer situação e sendo reconhecido como uma família. Daí a sempre lúcida ponderação de Caio Mário da Silva Pereira, no sentido de que os companheiros são reconhecidos “como tais perante os amigos e a sociedade”.

Com isso, eventuais relações furtivas, misteriosas e secretas não podem estar aptas a constituir um vínculo familiar, até mesmo porque comprometem a própria intenção das partes de viver como se casados fossem. Em suma: ocultar a relação convivencial estável poderá implicar em comprometimento do próprio ânimo de viver em estado familiar.

  1. A ausência de impedimentos matrimoniais e não incidência das causas suspensivas.

Os impedimentos matrimoniais, como visto alhures, são proibições para a celebração do casamento e, naturalmente, incidem, por igual, na união estável. Até porque, de regra, somente poderá ser caracterizada como união estável a relação que puder ser convertida em casamento – o que, por óbvio, conduz à incidência dos impedimentos matrimoniais nas relações convivenciais.

Importante, no entanto, atentar para uma mitigação da aplicabilidade dos impedimentos. É mister observar que a existência de casamento anterior (art. 1.521, VI) não constituirá óbice para a caracterização da união estável se um dos companheiros, embora ainda casado, já estiver separado de fato – independentemente de prazo. Contudo, se um dos companheiros encontra-se submetido a um dos outros impedimentos matrimoniais, não configurará união estável, restando caracterizado o concubinato, nos termos do art. 1.727 do Código Civil.

Outrossim, vale sublinhar que, apesar de os impedimentos matrimoniais serem aplicáveis à união estável, as causas suspensivas não embaraçam a sua caracterização (CC, art. 1.723, §2º). Maria Berenice Dias, com acerto, leciona que as restrições decorrentes das causas suspensivas não são invocáveis na união estável. Não se pode falar sequer em analogia, pois descabe limitar direitos quando a lei expressamente não o faz.

  1. A união estável putativa e a possibilidade excepcional de simultaneidade de núcleos familiares.

É certo que a histórica posição encontrada no direito brasileiro é no sentido de negar todo e qualquer efeito às uniões paralelas, buscando-se conferir prestígio ao princípio da monogamia. Nesse sentido, leciona Carlos Roberto Gonçalves: “Como também ocorre nas uniões conjugais, o vínculo entre os companheiros deve ser único, em face do caráter monogâmico da relação. Não se admite que pessoa casada, não separada de fato, venha a constituir união estável, nem que aquela que convive com um companheiro venha a constituir outra união estável”. Também assim, o entendimento jurisprudencial continua fundamentado nessas premissas:

“[…] 4. Este Tribunal Superior consagrou o entendimento de ser inadmissível o reconhecimento de uniões estáveis paralelas. Assim, se uma relação afetiva de convivência for caracterizada como união estável, as outras concomitantes, quando muito, poderão ser enquadradas como concubinato (ou sociedade de fato). 5. Agravo regimental a que se nega provimento” (STJ, Ac. Unân., 3ª T., Agr. Reg. Agr. Instr. 1130816/MG, Rel. Des. Convocado Vasco della Giustina, j. 19.8.2010, DJe 27.8.2010).

Todavia, não nos parece a melhor solução. É que, apesar de ser inegável que a monogamia possui uma relevante função ordenadora do sistema jurídico, não se pode ignorar a existência de outros valores que, igualmente, norteiam as relações familiares, como a dignidade da pessoa humana e a boa-fé. Com isso, em visível utilização da técnica de ponderação de interesses, admite-se a relativização da monogamia em determinados casos, para prestigiar outros valores, que, casuisticamente, se mostram merecedores de proteção.

Outrossim, considerando que o casamento pode ser putativo (veja-se, a respeito, o art. 1.561 do Código Civil), quando, apesar de nulo ou anulável, um (ou mesmo ambos) cônjuge estiver de boa-fé (incorrendo em erro desculpável), não se vê motivo para impedir a caracterização de uma união estável como tal. É importante pensar no caso concreto. Se uma pessoa já casada resolve casar de novo (na constância do seu matrimônio) e não esclarece para a segunda noiva sobre o seu estado civil, induzindo a mesma a erro, provada a boa-fé, ela poderá requerer ao juiz o reconhecimento da putatividade e, assim, obter efeitos concretos do casamento, como, por exemplo, o uso do sobrenome, o direito de receber alimentos etc. Ora, qual seria o motivo para tratar diferentemente a união estável?

Assim, entendemos que, presente a boa-fé, é possível emprestar efeitos típicos do Direito das Famílias às uniões extramatrimoniais em que um dos companheiros sofre um dos impedimentos matrimoniais, porém, o outro interessado está laborando em erro desculpável. Aliás, esse entendimento encontra apoio na melhor doutrina. Veja-se, a respeito, a manifestação de Euclides de Oliveira: “Cumpre lembrar a possibilidade de união estável putativa, à semelhança do casamento putativo, mesmo em casos de nulidade e anulação da segunda união, quando haja boa-fé por parte de um ou de ambos os cônjuges, com reconhecimento de direitos. A segunda, a terceira ou múltipla união de boa-fé pode ocorrer em hipótese de desconhecimento, pelo companheiro inocente, da existência de casamento ou de anterior paralela união estável por parte do outro”.

Mais incisiva e direta, Maria Berenice Dias, corroborando a ideia aqui defendida, assegura que negar a união estável putativa não atende aos ditames elementares de justiça e de ética (aliás, uma das diretrizes do Código Civil de 2002). E dispara: “O casamento, embora nulo, mas realizado de boa-fé, produz todos os efeitos jurídicos até que seja desconstituído. No mínimo, em se tratando de união estável constituída em afronta aos impedimentos legais, há que se invocar o mesmo princípio e reconhecer a existência de uma união estável putativa. Estando um ou ambos os conviventes de boa-fé, é mister atribuir efeitos à união”.

Demais de tudo isso, vale o acréscimo de que a boa-fé que viabiliza a união estável putativa pode ser a boa-fé objetiva, que não decorre da falta de conhecimento da parte, mas, sim, do comportamento que desperta uma confiança. Volvendo a visão para a hipótese aqui tratada, será possível a união estável putativa, com base na boa-fé objetiva, quando a parte, apesar de saber que o outro sofre um impedimento para o casamento, é levada a acreditar, por motivos diversos, que aquele óbice não existe. Seria a hipótese do companheiro que, embora casado e convivendo com a esposa, faz a companheira acreditar que não mais existe convivência marital, afetiva, que o casal dorme em quartos separados e que tudo ainda não se resolveu por conta dos filhos, por exemplo. Merece apoio a posição da Corte de Justiça gaúcha, incorporando esta compreensão:

“União estável. Situação putativa. Affectio maritalis. Notoriedade e publicidade do relacionamento. Boa-fé da companheira. Prova documental e testemunhal. […] 2. Tendo o relacionamento perdurado até o falecimento do varão e se assemelhado a um casamento de fato, com coabitação, clara comunhão de vida e de interesses, resta induvidosa a affectio maritalis. 3. Comprovada a notoriedade e a publicidade do relacionamento amoroso havido entre a autora e o de cujus, é cabível o reconhecimento de união estável putativa, quando fica demonstrado que a autora não sabia do relacionamento paralelo do varão com a mãe da ré. Recurso provido” (TJ/RS, Ac. 7ª Câm. Cív., Ap. Cív. 70025094707 – Comarca de Gravataí, Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, j. 22.10.2008, DJRS 30.10.2008).

Também há precedente na jurisprudência catarinense:

“[…] 2. Embora seja predominante, no âmbito do Direito de Família, o entendimento da inadmissibilidade de se reconhecer a dualidade de uniões estáveis concomitantes, é de se dar proteção jurídica a ambas as companheiras em comprovado o estado de recíproca putatividade quanto ao duplo convívio com o mesmo varão, mostrando-se justa a solução que alvitra a divisão da pensão derivada do falecimento dele e da terceira mulher com quem fora casado” (TJ/SC, Ac. 4ª Câmara de Direito Civil, Ap. Cív. 2009.041434-7, Rel. Des. Eládio Torret Rocha, j. 10.11.2011).

Estabelecida uma união estável putativa, o respeito necessário à boa-fé impõe o reconhecimento concomitante de direitos às pessoas envolvidas, inclusive com a divisão do patrimônio comum em três partes (é o que a jurisprudência vem chamando de triação), uma delas do cônjuge adúltero e as outras duas partes da esposa e da companheira putativa (TJ/RS, Ac. 8ª Câm. Cív., Ap. Cív. 70011962503 – Comarca de Caxias do Sul, Rel. Des. Rui Portanova, j. 17.11.2005, DJRS 20.12.2005).

Como bem destaca Rodrigo da Cunha Perreia, nem sempre essas três partes serão equivalentes. Pode ocorrer a divisão “em duas metades, uma para o cônjuge ou companheiro(a) que estabeleceu a conjugalidade primeiro e a outra metade para o outro, que estabeleceu a relação conjugal posteriormente a que ele já tinha. Desta metade é que se partilhará com o(a) companheiro(a) da união paralela. Ou seja, fica 50% para o cônjuge/companheiro e 25% para cada um dos outros dois que mantiveram a união simultânea”. Além disso, permite-se à companheira putativa a cobrança de pensão alimentícia e o direito à herança, dentre outros efeitos jurídicos típicos da relação familiar.

  1. Efeitos pessoais da união estável.
  2. As relações pessoais entre os companheiros.

Tal como acontece no casamento, a união estável irradia suas consequências em diferentes campos, projetando-se nas relações patrimoniais, de índole econômica, e também nas relações pessoais, domiciliadas no âmbito interno da relação mantida pelo casal e em muito se assemelham aos efeitos do casamento.

Os efeitos pessoais entre os companheiros dizem respeito à vida em comum do casal, sem qualquer conotação econômica, implicando em direitos e deveres recíprocos. São aqueles mesmos existentes no espaço interno de qualquer outra relação familiar, dizendo respeito aos companheiros, nas relações entre si e para com a sociedade como um todo.

Observe-se, no entanto, que o Código Civil restringiu a decorrência de efeitos pessoais nas uniões estáveis. Em sendo assim, não admitiu que produzisse a emancipação do companheiro menor (CC, art. 5º), a presunção de paternidade dos filhos nascidos na constância da relação convivencial (CC, art. 1.597) e a mudança do estado civil das partes envolvidas. Isso porque a união estável, em face da ausência de formalidade e ato público, não poderia, no entender do legislador, produzir efeitos em relação aos terceiros e à coletividade, somente surtindo consequências intrapartes.

Não parece ser a melhor solução. Com efeito, não parece razoável privar o companheiro menor de idade da emancipação. Isso porque se a união estável é entidade familiar, merecedora de especial proteção do Estado, não há sentido em restringir a proteção do companheiro menor de idade. Sobre o tema, inclusive, já há precedentes jurisprudenciais reconhecendo a emancipação decorrente de união convivencial (TJ/GO, Ac. 1ª Câm. Cív., Ap. Cív. 57266-0/188 – Comarca de Quirinópolis, Rel. Des. Ney Teles de Paula, j. 9.10.2001, DJGO 12.11.2001).

Também não parece razoável negar a incidência da presunção de paternidade (presunção pater is est) dos filhos havidos de uma união estável. É que deixar de aplicar a presunção pater is est na união estável afronta, a mais não poder, a norma expressa na Constituição Federal (art. 227) de proibição de todo e qualquer tratamento discriminatório entre os filhos. Nesse sentido, inclusive, já há um relevante precedente no Superior Tribunal de Justiça, palmilhando exatamente o caminho aqui pavimentado:

“[…] IV – Assim, se nosso ordenamento jurídico, notadamente o próprio texto constitucional (art. 226, § 3º), admite a união estável e reconhece nela a existência de entidade familiar, nada mais razoável de se conferir interpretação sistemática ao art. 1.597, II, do Código Civil, para que passe a contemplar, também, a presunção de concepção dos filhos na constância de união estável. […]” (STJ, Ac. Unân., 3ª T., REsp. 1.194.059/SP, Rel. Min. Massami Uyeda, j. 6.11.2012, DJe 14.11.2012).

Lembre-se, outrossim, que na constância de uma união estável, assim como de um casamento, não corre prescrição entre os companheiros e, por conseguinte, não flui o prazo para o usucapião (prescrição aquisitiva) entre eles (CC, art. 197). Entretanto, excepcionando essa regra, autoriza o art. 1.240-A do Código Civil o usucapião conjugal, também apelidado de usucapião por abandono de lar.

  1. Os deveres recíprocos entre os companheiros e a dispensa da coabitação.

O Estatuto Civil, no art. 1.724, impõe aos companheiros direitos e deveres recíprocos, marcando, fundamentalmente, os efeitos pessoais da união estável. Assim, exige-se dos companheiros, reciprocamente, os deveres de “lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos”. Aliás, percebe-se uma grande semelhança entre os direitos e deveres recíprocos do casamento (CC, art. 1.566) e aqueles da união estável (CC, art. 1.724). A pequena diferença diz respeito à dispensa da coabitação como requisito para a caracterização da união estável e não exigência de fidelidade recíproca.

No que concerne à coabitação, de fato, o entendimento predominante, de há muito, e que bem se justifica é no sentido de não se exigir na união estável a morada sob o mesmo teto. Nesse sentido, inclusive, o Supremo Tribunal Federal já sedimentou entendimento na Súmula 382: “A vida em comum sob o mesmo teto more uxorio, não é indispensável à caracterização do concubinato”. Zeno Veloso, com fina percepção, esclarece que “se o casal, mesmo morando em locais diferentes, assumiu uma relação afetiva, se o homem e a mulher estão imbuídos do ânimo firme de constituir família, se estão na posse do estado de casados, e se o círculo social daquele par, pelo comportamento e atitudes que os dois adotam, reconhece ali uma situação com aparência de casamento, tem-se de admitir a existência da união estável”.

Quanto ao dever jurídico de fidelidade recíproca, apesar de não ter sido acolhido expressamente pelo texto codificado, encontra-se, perfeitamente, inserido no conceito de lealdade e respeito recíprocos. Aliás, Álvaro Villaça Azevedo advoga que “a lealdade é gênero de que a fidelidade é espécie” lealdade e respeito constituem gênero do qual a fidelidade é uma de suas espécies.

De qualquer modo, convém suscitar um importante questionamento acerca da natureza da fidelidade. Seria ela um dever jurídico ou moral? Haveria interesse público na exigibilidade da fidelidade alheia? A nós, parece não haver interesse público, enfeixando-se nas latitudes e longitudes do interesse privado, transbordando a exigibilidade jurídica. Trata-se, em verdade, de uma questão de foro íntimo, presa, fundamentalmente, aos contornos afetivos e éticos de cada relacionamento humano.

  1. Direito ao uso do sobrenome do companheiro.

O art. 57, §§ 2º e 3º, da Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73), com a redação emprestada pela Lei nº 6.216/75, estampa a possibilidade de acréscimo do sobrenome pela pessoa que está convivendo em união estável, semelhantemente às pessoas casadas. Aliás, averbe-se que, apesar de a norma legal fazer referência ao acréscimo de nome de família pela mulher, tal possibilidade abrange, sem a menor sombra de dúvidas, também o homem, em face da isonomia constitucional (CF/88, art. 5º, caput e inciso I).

Questão tormentosa diz respeito à perda, ou não, do sobrenome acrescido pelo término da relação convivencial. Ausente previsão expressa em lei, resta concluir, por analogia (LINDB, art. 4º), que, tal qual no casamento, a utilização do nome patronímico do companheiro é direito da personalidade de quem o acresceu, a partir do permissivo do art. 1.565, § 1º, do Código Civil e do art. 57, § 2º, da Lei nº 6.015/73 – Lei de Registros Públicos.

  1. Estabelecimento de vínculo de parentesco por afinidade.

Também pela união estável é estabelecido o vínculo de parentesco por afinidade entre um companheiro e os parentes do outro convivente. Trata-se de novidade do Código Civil de 2002, decorrendo da redação do seu art. 1.595, que estabelece, expressamente: “Cada cônjuge ou companheiro é aliado aos parentes do outro pelo vínculo da afinidade”.

Não é demais lembrar que com a dissolução da união estável não será extinto o vínculo de parentesco por afinidade em linha reta (ascendente ou descendente), mantendo-se a relação até a morte de uma das partes. Por isso, não será possível o casamento do convivente com a mãe de sua ex-companheira, pois o impedimento matrimonial se mantém mesmo após o término da relação amorosa. É o que decorre, inclusive, do art. 1.521 do Codex.

  1. Adoção por companheiros.

Alargando as latitudes do Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código Civil contemplou a possibilidade de adoção por companheiros, na constância da união estável, equiparando aos efeitos pessoais do casamento. Constava do art. 1.618, parágrafo único, que “a adoção por ambos os cônjuges ou companheiros poderá ser formalizada, desde que um deles tenha completado dezoito anos de idade, comprovada a estabilidade da família”. De idêntica maneira, o art. 1.622 estabelecia que “ninguém pode ser adotado por duas pessoas, salvo se forem marido e mulher, ou se viverem em união estável”.

Na mesma levada, a Lei nº 12.010/09, modificando o § 2º do art. 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente, reconhece a possibilidade de adoção conjunta pelo casal que esteja em união estável, comprovada a estabilidade do núcleo familiar. Aliás, o § 4º do citado dispositivo legal reconhece, inclusive, que os “ex-companheiros podem adotar conjuntamente, contanto que a acordem sobre a guarda e o regime de visitas e desde que o estágio de convivência tenha sido iniciado na constância do período de convivência e que seja comprovada a existência de vínculos de afinidade e afetividade”. Nessa hipótese, é possível, até mesmo, o estabelecimento de guarda compartilhada entre os ex-companheiros/adotantes (ECA, art. 42, § 5º).

Por evidente, a possibilidade de adoção pelo par em união estável não afasta a possibilidade de adoção unilateral por pessoa que viva em companheirismo, inclusive sendo possível a adoção por um dos companheiros do filho do outro.

Mesmo que se trate de união estável homoafetiva, a adoção pelo casal é possível, conforme entendimento jurisprudencial superior (STJ, Ac. unân., 4ª T., REsp 889.852/RS, rel. Min. Luís Felipe Salomão, j. 27.4.2010, DJe 10.8.2010).

  1. Exercício da curatela pelo companheiro na ação de interdição e na ação declaratória de ausência.

Estão sujeitas à curatela as pessoas que se enquadrem nas hipóteses de incapacidade civil relativa previstas no art. 4º do Código Civil, com a redação emprestada pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência. Aliás, também ficam sujeitos à curatela os ausentes, declarados assim por uma decisão judicial. Em tais hipóteses, o ordenamento jurídico estabelece a nomeação de um curador para cuidar dos interesses pessoais e patrimoniais do incapaz relativamente e do ausente, como mecanismo protetivo. Pois bem, de acordo com a sistemática legal, essa curatela, tanto na curatela, quanto na ausência, será exercida, preferencialmente, pelo cônjuge ou pelo companheiro.

Como corolário dessa possibilidade de o companheiro ser nomeado curador é de reconhecer, por igual, a sua plena legitimidade para propor a ação de curatela, como bem estabelece o art. 747, I, do Código de Processo Civil de 2015. Igualmente, tem legitimidade para o ajuizamento do pedido de declaração de ausência, apesar da imperfeita redação do art. 25 do Código Civil, que reclama uma interpretação conforme a Constituição Federal, para reconhecer a sua legitimatio ad causam.

  1. Sub-rogação e retomada na locação de imóvel urbano.

Reza a Lei nº 8.245/91 – Lei de Locação de Imóveis Urbanos, notadamente em seu art. 11, que na hipótese de óbito do locatário na constância da relação locatícia, o seu cônjuge ou companheiro sobrevivente, assim como os herdeiros necessários, ficarão sub-rogados automaticamente nos direitos e obrigações concernentes ao contrato, desde que residentes no imóvel. Trata-se de típica hipótese de sub-rogação legal, independentemente da anuência das partes.

Também no caso de dissolução da união estável, por igual, o companheiro que permanecer no imóvel sub-roga-se, automaticamente, nos direitos contratuais, mesmo que não conste, expressamente, na relação contratual locatícia originária. Aliás, com o advento da Lei nº 12.112/09, que dispõe sobre a locação de imóveis urbanos, a situação se tornou mais clara, em razão da redação emprestada ao art. 12 do Diploma Legal regulamentador das locações: “Em casos de separação de fato, separação judicial, divórcio ou dissolução da união estável, a locação residencial prosseguirá automaticamente com o cônjuge ou companheiro que permanecer no imóvel”.

A outro giro, o art. 47, III, do referido diploma legal assegura, pela mesma lógica, nos contratos de locação por tempo indeterminado, o direito de retomada do imóvel para uso próprio, do seu cônjuge ou do seu companheiro, ascendente ou descendente, que não disponha de imóvel residencial próprio.

  1. A questão da indenização por descumprimento dos deveres pessoais entre os companheiros (a responsabilidade civil na união estável).

Com efeito, apesar de grande divergência doutrinária, temos posição sólida e segura no sentido de que o descumprimento de obrigações convivenciais (tais como o dever de respeito e lealdade ou mesmo o dever de mútua assistência moral e material), por si só, não gera qualquer dano indenizável, fugindo à incidência da responsabilidade civil. O Tribunal de Justiça gaúcho já se manifestou a respeito do tema, em questão específica concernente ao companheirismo, negando a indenização. Veja-se:

“A quebra de um dos deveres conjugais inerentes à união estável – a fidelidade – não gera o dever de indenizar, nem a quem o quebra – um dos conviventes – e, menos ainda, a um terceiro que não integra o contrato existente e que é em relação a este parte alheia” (TJ/RS, Ap. Cív. 597.155.167, Rel. Des. Eliseu Torres, j. 11.2.1998).

Não se pense, porém, que não poderia decorrer responsabilidade civil de uma relação convivencial. Apenas é preciso enxergar que a ruptura de dever convivencial, isoladamente, não tem o condão de impor a obrigação indenizatória. Para a caracterização do dever de indenizar na união estável é preciso que se consubstancie um ato ilícito, na forma e com os requisitos do art. 186 do Código Civil, demonstrada a culpa do companheiro. Exemplificando, podemos imaginar a ocorrência de lesões corporais de um convivente para com o outro ou mesmo uma injúria grave. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça inclina-se exatamente nesse sentido. Vale conferir a ementa:

“A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil (de 1916, art. 186 do Código Civil de 2002) o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária” (STJ, Ac. 4ª T., REsp. 757.411/MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 29.11.2005, DJU 27.3.2006, RBDFam 35: 91).

5.9 Enquadramento como herdeiro necessário Malgrado a redação do art. 1.845 do Estatuto Civil sinalize em sentido distinto, o companheiro há de ser tratado como herdeiro necessário, ao lado do cônjuge, dos descendentes e dos ascendentes.

Em sendo assim, reconhecida a sua qualidade de herdeiro necessário, a pessoa em união estável não pode ser excluída da vocação hereditária pela vontade do autor da herança, fazendo jus a uma parte indisponível, correspondente à metade do patrimônio líquido disponível, quando da abertura da sucessão (= morte), denominada de legítima. Justifica-se tal interpretação pela óbvia incidência da norma constitucional que garante ao companheiro especial proteção do Estado (CF, art. 226, §3º). Se o cônjuge é tratado como herdeiro necessário, o companheiro também deve sê-lo, na medida em que não se justificaria atribuir status diferenciado a cada um deles, na medida em que não há uma ordem de preferência na proteção das entidades familiares, todas elas merecendo especial proteção do Estado.

Conquanto o texto literal do art. 1.845 do Codex se apresente preconceituoso e estigmatizante, a sua leitura à luz do Texto Constitucional, promovendo uma interpretação conforme a Carta Magna, conduz à conclusão de que o companheiro deve ser tratado como herdeiro necessário, garantindo-se-lhe a metade do patrimônio líquido disponível no momento do falecimento (a legítima – CC, art. 1.846). Essa conclusão, inclusive, foi prestigiada pela Corte Suprema no julgamento do Recurso Extraordinário 878.694/MG.

  1. Impedimento para testemunhar.

Por óbvio, o companheiro encontra-se impedido de testemunhar em processo do interesse, direto ou indireto, de seu convivente, em razão de seu efetivo envolvimento emocional, comprometendo a lisura do seu eventual depoimento em juízo. Por isso, o inciso I do §2º do art. 447 do Código de Processo Civil de 2015 é direto e preciso ao afirmar que são impedidos de testemunhar “o cônjuge, o companheiro, o ascendente e o descendente em qualquer grau e o colateral, até o terceiro grau, de alguma das partes, por consanguinidade ou afinidade, salvo se o exigir o interesse público ou, tratando-se de causa relativa ao estado da pessoa, não se puder obter de outro modo a prova que o juiz repute necessária ao julgamento do mérito”.

Não se pode perder de vista que o fundamento da vedação constante no dispositivo mencionado é, sem dúvida, a relação afetiva existente entre as pessoas ali contempladas, interessando o respeito ao vínculo sentimental, dando a exata percepção de que o rol de pessoas não admitidas a prestar testemunho tem de ser compreendido pelo viés afetivo, encartados nele quem vive em união estável.

  1. Efeitos patrimoniais.
  2. As consequências econômicas da união estável.

Não que se almeje, como finalidade precípua, as consequências econômicas no companheirismo, porém não se pode olvidar que em toda união estável efeitos patrimoniais decorrerão naturalmente, independentemente da vontade das partes. O tráfego das relações jurídicas econômicas (reais e obrigacionais) é absolutamente natural nas entidades familiares, pois os companheiros assumem os solidários encargos de cuidar do sustento do lar, respondendo por despesas comuns para a manutenção da família.

Dentre os efeitos patrimoniais da união estável sobreleva explicar que alguns decorrerão de sua dissolução em vida, enquanto outros defluem da dissolução por morte. Note-se que na dissolução por ato entre vivos, decorrem o direito à meação e aos alimentos. Quando extinta a relação pela morte de um dos conviventes, o sobrevivente poderá reclamar, além da sua meação, o direito à herança (inclusive podendo pleitear a inventariança), à habitação e aos eventuais benefícios previdenciários, tudo isso sem prejuízo da sub-rogação no contrato de locação de imóvel urbano. Tanto em uma hipótese, quanto na outra, a dissolução não afeta a proteção do bem de família.

  1. O regime de bens e o direito à meação.

Com o advento das Leis nos 8.971/94 e 9.278/96, o nosso ordenamento jurídico estabeleceu, nas uniões estáveis, a comunhão dos bens adquiridos a título oneroso na constância da relação, reconhecendo, assim, o direito à meação entre os companheiros. Em verdade, o sistema jurídico criou, assim, uma verdadeira presunção de colaboração na aquisição de patrimônio entre os companheiros, subentendendo o esforço recíproco entre eles. O Código Civil, em seu art. 1.725, amplia essa regra, conferindo contornos mais claros, ao dispor: “Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime de comunhão parcial de bens”.

Caracterizada a união estável, os bens adquiridos onerosamente, na constância da relação, pertencem a ambos os companheiros, não havendo, sequer, necessidade de comprovação do esforço comum (colaboração recíproca), que é presumido, de forma absoluta, pela lei. A referida compreensão restou vitoriosa, também, nas Jornadas de Direito Civil, cimentada no Enunciado 115 da Jornada de Direito Civil: “Há presunção de comunhão de aquestos na constância da união extramatrimonial mantida entre os companheiros, sendo desnecessária a prova do esforço comum para se verificar a comunhão dos bens”. Assim também caminha a jurisprudência superior:

“[…] é de se reconhecer o direito do companheiro sobrevivente à meação dos bens adquiridos a título oneroso ao longo do relacionamento, independentemente da prova do esforço comum, que nesses casos, é presumida, conforme remansosa jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça” (STJ, Ac. unân. 3ª T., EDclREsp 633.713/RS, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 11.2.14, DJe 28.2.14).

Não é demais observar, inclusive, que essa colaboração não precisa ser material, decorrendo da simples convivência, no âmbito interno do lar, o que implicará em comunhão de vida, criando um clima propício para a aquisição do patrimônio.

Essa presunção absoluta de colaboração recíproca somente cessará em algumas situações, nas quais se demonstre a inexistência de ajuda mútua entre o casal, sob pena de enriquecimento sem causa: (i) quando as partes estipularam contrato de convivência em sentido contrário; (ii) se a aquisição ocorreu durante a convivência, mas em sub-rogação de bens adquiridos anteriormente; (iii) na hipótese de aquisição após a separação de fato. Esse caminho já foi pavimentado, inclusive, por orientação jurisprudencial (STJ, Ac. 3ª T., REsp. 758.548/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 3.10.2006, DJU 13.11.2006, p. 257).

Ademais, há um sério conflito normativo no Código Civil. É que o art. 1.723 autoriza a possibilidade de caracterização da união estável pela simples separação de fato de uma pessoa que ainda seja casada. E, mais adiante, no art. 1.725, o legislador determina a aplicação das regras da comunhão parcial nessa entidade familiar. No entanto, inexplicavelmente, o art. 1.642, V, do mesmo Diploma Legal, afirma que, uma vez separado de fato o casal, a comunhão de bens somente cessará depois de cinco anos. A única resposta consentânea com a proteção constitucional dedicada à família e à pessoa humana é no sentido de que a simples separação de fato faz cessar a comunhão de bens, buscando conferir sentido e harmonia ao malfadado art. 1.642, V, do Código Civil. Aliás, esse é o entendimento patrocinado pelo Superior Tribunal de Justiça, afirmando que

“[…] tratando-se de aquisição após a separação de fato, à conta de um só dos cônjuges, que tinha vida em comum com outra mulher, o bem adquirido não se comunica ao outro cônjuge, ainda quando se trate de casamento sob o regime da comunhão universal” (STJ, Ac., 3ª T., REsp. 67.678/RS, Rel. Min. Nílson Naves, DJU 14.8.2000).

“Não integram o patrimônio, para efeito de partilha, uma vez decretado o divórcio direto, os bens havidos após a prolongada separação de fato” (STJ, Ac. 3ª T., REsp. 40.785/RJ, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJU 5.6.2000).

Sublinhe-se, por oportuno, que esse direito à meação, reconhecido aos companheiros, pode ser exigido na dissolução da união, seja por ato em vida (através de ação de dissolução de união estável, pelo procedimento comum ordinário), seja por ato post mortem (por meio de inventário dos bens deixados pelo falecido). Outrossim, aplicável às relações patrimoniais decorrentes da união estável, no que couber, as regras da comunhão parcial, conclui-se, com facilidade, que a administração do patrimônio comum pertencerá, por óbvio, a qualquer dos companheiros, diferentemente dos bens particulares, que serão administrados somente pelo próprio titular (CC, art. 1.663).

Há, ainda, uma instigante discussão sobre a incidência, ou não, das regras limitadoras da escolha do regime de bens no casamento, previstas no art. 1.641 da norma codificada. Em linha de princípio, há de se concluir pela não incidência na união estável do regime de separação obrigatória de bens. A uma, porque não incidem as causas suspensivas na relação convivencial (CC, art. 1.523). A duas, porque não há necessidade de autorização judicial para constitui-la. A três, porque, em se tratando de norma limitadora de direitos, a interpretação da lei há de ser, necessariamente, restritiva.

A jurisprudência superior, entretanto, restou consolidada em sentido distinto, aplicando o regime de separação obrigatória na união estável quando a relação se inicia quando um deles conta com mais de setenta anos de idade:

“1. Devem ser estendidas, aos companheiros, as mesmas limitações previstas para o casamento, no caso de um dos conviventes já contar com mais de sessenta anos à época do início do relacionamento, tendo em vista a impossibilidade de se prestigiar a união estável em detrimento do casamento. 2. De acordo com o art. 1.641, inciso II, do Código Civil, com a redação anterior à dada pela Lei 12.344/2010 (que elevou essa idade para setenta anos, se homem), ao nubente ou companheiro sexagenário, é imposto o regime de separação obrigatória de bens” (STJ, Ac. 3a T., REsp 1.369.860/PR, rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 19.8.14, DJe 4.9.14).

Outra situação digna de nota diz respeito à necessidade, ou não, de consentimento do companheiro para a alienação ou oneração de bens imóveis, bem assim como para a fiança e o aval, exigível das pessoas casadas (CC, art. 1.647). Por um lado, há quem defenda a extensão das exigências desse artigo à união estável, sob o argumento de que, embora a referência expressa seja aos cônjuges, seria exigível a outorga a todos os casos de incidência da comunhão de bens, o que alcançaria a união estável (CC, art. 1.725), salvo existindo um contrato escrito, estabelecendo a separação absoluta.

Em posição diametralmente oposta, há quem negue a necessidade de outorga para a prática de qualquer ato na união estável. É que, como não se exige registro público de uma união estável, não há como o terceiro estar protegido de eventuais prejuízos. O problema aumenta de tamanho quando se percebem as dificuldades de se estabelecer, com precisão, os limites temporais da união estável, tornando praticamente impossível exigir de terceiros as cautelas necessárias quando contratar com quem esteja vivendo em união estável. A segurança jurídica ficaria, sobremodo, comprometida.

A segunda posição merece apoio. Essa desnecessidade de outorga na união estável se justifica por diferentes razões. Primus, porque se tratando de regra restritiva à disposição de direitos, submete-se a uma interpretação restritiva, dependendo de expressa previsão legal. Secundus, pois a união estável é uma união fática, não produzindo efeitos em relação a terceiros. Tertius, e principalmente, em face da premente necessidade de proteção do terceiro adquirente de boa-fé, que veio a adquirir um imóvel sem ter ciência (e não há como se exigir dele) que o alienante havia adquirido o imóvel na constância de uma união estável.

A questão não está pacificada na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:

“[…] 4. A exigência de outorga uxória a determinados negócios jurídicos transita exatamente por este aspecto em que o tratamento diferenciado entre casamento e união estável é justificável. É por intermédio do ato jurídico cartorário e solene do casamento que se presume a publicidade do estado civil dos contratantes, de modo que, em sendo eles conviventes em união estável, hão de ser dispensadas as vênias conjugais para a concessão de fiança. 5. Desse modo, não é nula nem anulável a fiança prestada por fiador convivente em união estável sem a outorga uxória do outro companheiro” (STJ, Ac. unân. 4ª T., REsp. 1.299.866/DF, rel. Min. Luís Felipe Salomão, j. 25.2.14, DJe 21.3.14).

1. A necessidade de autorização de ambos os companheiros para a validade da alienação de bens imóveis adquiridos no curso da união estável é consectário do regime da comunhão parcial de bens, estendido à união estável pelo art. 1.725 do Código Civil, além do reconhecimento da existência de condomínio natural entre os conviventes sobre os bens adquiridos na constância da união […] 4. A invalidação da alienação de imóvel comum, realizada sem o consentimento do companheiro, dependerá da publicidade conferida a união estável mediante a averbação de contrato de convivência ou da decisão declaratória da existência união estável no Ofício do Registro de Imóveis em que cadastrados os bens comuns, ou pela demonstração de má-fé do adquirente”(STJ, Ac. unân. 3ª T., REsp 1.424.275/MT, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 4.12.14, DJe 16.12.14).

O ideal, sem dúvida, é que as pessoas que vivem em união estável tomem o cuidado de registrar o patrimônio adquirido, na constância da convivência, em nome de ambos, evitando, assim, dissabores e problemas futuros e garantindo a divisão do bem, quando da dissolução da entidade familiar. No campo processual, porém, o Código de Processo Civil de 2015, inovando o tema, determinou que se aplica à união estável (CPC, art. 73, § 3º), a regra do art. 73, estabelecendo que “o cônjuge necessitará do consentimento do outro para propor ação que verse sobre direito real imobiliário, salvo quando casados sob o regime de separação absoluta de bens”. Assim, nas ações reais imobiliárias será necessária a presença do companheiro, exceto se estiverem sob o regime de separação total de bens. A dificuldade ocorrerá quando o autor, na petição inicial, não souber que o réu convive estavelmente, uma vez que a relação convivencial não exige formalidades ou registros.

  1. O contrato de convivência na união estável e seus efeitos.
  2. A) Contornos gerais do contrato de convivência.

Compreendendo as latitudes do direito à meação reconhecido pelo Código Civil, importa assinalar que se deixou aberta aos conviventes a possibilidade de estipular regras patrimoniais específicas para nortear os efeitos patrimoniais da relação, por meio de um contrato escrito, afastando, assim, o regime de comunhão parcial determinado por lei (CC, art. 1.725). É o que se convencionou chamar de contrato de convivência ou contrato particular de convívio conjugal.

De fato, tendo na tela da imaginação o basilar princípio da autonomia privada – norteador das relações civis –, é possível que os companheiros escolham, respeitados determinados limites, diferentes regimes econômicos para disciplinar suas relações convivenciais. Bem por isso, Francisco José Cahali, em obra dedicada ao tema, identifica o contrato de convivência como “o instrumento pelo qual os sujeitos de uma união estável promovem regulamentações quanto aos reflexos da relação, que serão tratadas adiante quando analisado o conteúdo das disposições contratuais entre os conviventes”.

  1. B) Celebração do contrato de convivência e modificabilidade.

Considerando que a união estável é uma realidade fática, desprovida de formalidades legais, o contrato de convivência, por conseguinte, é um negócio jurídico informal, não reclamando solenidades previstas em lei. Apenas e tão somente exige-se a sua celebração por escrito, afastando-se a forma verbal. Assim, pode ser celebrado por escritura pública ou particular, não submetido ao registro público.

Aliás, é possível que se realize um contrato de convivência por instrumento particular, mesmo para a escolha do regime de comunhão universal de bens, pela ausência de exigência legal.

Dispensa-se, até mesmo, a presença de testemunhas, impondo-se uma interpretação construtiva do art. 221 do Código Civil para reconhecer que a presença das testemunhas diz respeito à prova do ato e não à sua validade. Justifica-se tal informalidade, também, pela impossibilidade de regulamentação excessiva em lei das uniões estáveis, respeitando-se a sua própria natureza.

Também vale assinalar que o pacto convivencial pode ser celebrado a qualquer tempo, mesmo durante a união estável, diferenciando-se, pois, do pacto antenupcial. Ademais, considerada a sua natureza informal e percebendo que se trata de um mero “protocolo de intenções” das partes para o futuro, tem-se a possibilidade de modificação do conteúdo do contrato de convivência, a qualquer tempo, desde que por ato de vontade de ambas as partes, vedada a alteração unilateral.

  1. C) Eficácia do pacto convivencial.

De logo, convém observar que a celebração do contrato de convivência, por si só, não tem o condão de impor a caracterização da união estável. É essencial, pois, para a eficácia do pacto que se consubstancie a relação de convivência, apresentando-se esta como verdadeira condição suspensiva para a eficácia do negócio. Até mesmo porque o contrato é negócio acessório, submetido ao principal (que é a união estável).

No máximo, o que se pode admitir é a sua utilização como meio de prova da existência da união estável e, ainda assim, de forma relativa (não absoluta). É importante observar, ainda, que tal negócio jurídico não produzirá efeitos retroativos (ex nunc), pois as relações jurídicas patrimoniais dos companheiros até a data da celebração do pacto estarão submetidas à regra geral do regime de comunhão parcial de bens. Isto é, todos os bens adquiridos até a data do contrato submetem-se à comunhão parcial, e os bens adquiridos do negócio em diante estarão regidos pelo regime escolhido pelas partes.

Põe-se, nesse ponto, uma instigante questão: seria possível aos companheiros estabelecerem, no pacto, efeitos pretéritos? Parece-nos que a resposta é no sentido afirmativo. Não se vê qualquer óbice para que as partes, expressamente, venham a conferir eficácia retro-operante ao contrato de convivência, fazendo com que suas previsões atinjam situações passadas, respeitados, por óbvio, os interesses de terceiros.

  1. D) Conteúdo.

O conteúdo do pacto de convivência diz respeito, basicamente, ao estabelecimento de disposições de natureza patrimonial, regulamentando os efeitos econômicos daquela união estável. Assim, é lícito aos companheiros dispor, livremente, do patrimônio, comum e recíproco, inclusive podendo estabelecer percentuais diferentes de participação nos bens adquiridos ou mesmo criando novos modelos de regimes de bens. Por lógica, também serão admissíveis cláusulas contratuais alterando a regra de administração do patrimônio do casal.

Não se pode tolerar, contudo, cláusulas contratuais afastando ou suprimindo direitos e garantias estabelecidos em lei em favor dos companheiros, por ferir a ordem pública. Por isso, será nula, e não produzirá efeito jurídico, a cláusula que excluir, exempli gracia, o direito de herança ou o direito real de habitação, o direito de pensão previdenciária ou o direito à percepção de alimentos, por atentarem contra garantias expressas em lei.

Também não se admite a inserção de cláusula de arbitragem, em face da natureza indisponível do direito em pauta, como, aliás, dispõe o art. 852 do Codex, nem se tolera cláusula dispondo sobre a herança de pessoa viva, em face da proibição do pacta corvina, contida no art. 426 do Código Civil.

Outra interessante indagação a ser levantada concerne ao cabimento, ou não, de cláusula contratual estipulando, previamente, valor devido a título indenizatório pela extinção da relação convivencial. Parece-nos, em linha de princípio, inviável a inclusão de tais cláusulas por atentarem contra a natureza afetiva da relação de união estável. Em se tratando de relação de afeto e solidariedade, não se mostra compatível a previsão de indenização para a hipótese de cessação afetiva. No entanto, seria possível a previsão de cláusula negocial contemplando indenização para o caso de afronta a determinados direitos de ordem patrimonial, causando prejuízo econômico a um deles. Por lógica, tal disposição não possuirá natureza alimentar, mas mera fixação de renda ou capital em favor de um dos companheiros.

Por derradeiro, sobreleva pontuar a possibilidade de inserção de cláusulas de natureza existencial tratando de tarefas e afazeres domésticos entre os companheiros, com supedâneo na autonomia privada. Evidentemente, toda e qualquer cláusula de natureza existencial (não patrimonial) inserida em contrato de convivência não pode afrontar as normas de ordem pública e os direitos e garantias estabelecidos em lei. Com isso, não seria possível dispensar um dos companheiros da obrigação de guarda, sustento e educação dos filhos ou da assistência recíproca entre eles.

  1. E) O contrato de namoro e seus efeitos sobre a união estável.

Exatamente com o propósito de utilizar algum mecanismo para obstar a caracterização da união estável que se passou a difundir a celebração de um contrato de namoro para que as partes, através de manifestação expressa de vontade, esclarecessem o propósito de não estar vivendo em união estável. A intenção das partes seria “assegurar a ausência de comprometimento recíproco e a incomunicabilidade do patrimônio presente e futuro”, em consonância com as palavras de Maria Berenice Dias.

Pois bem, conquanto seja absolutamente possível a celebração de um contrato de namoro (porque a lei não exige forma prescrita em lei e porque o objeto não é ilícito), não conseguirão as partes impedir a eventual caracterização de uma união estável, cuja configuração decorre de elementos fáticos, não podendo ser bloqueada por um negócio jurídico. Por isso, esclarece corretamente Carlos Roberto Gonçalves que o contrato de namoro não impede que se materialize uma união estável, pois esta se trata de “um fato jurídico, um fato da vida, uma situação fática, com reflexos jurídicos, mas que decorrem da convivência humana”.

  1. F) O contrato de convivência e os companheiros sócios.

Não se pode deixar de lembrar a incidência na união estável do comando estampado no art. 977 do Estatuto Civil, autorizando a formação de sociedade entre cônjuges, desde que não estejam casados em regime de comunhão universal ou da separação obrigatória (art. 1.641, Código Civil). Fácil depreender, pois, que também na união estável é possível aos companheiros celebrar contrato de sociedade (por qualquer dos modelos societários previstos nas leis empresariais), desde que não tenham pactuado um contrato de convivência estabelecendo a comunhão universal de bens.

A vedação atinge tanto a participação societária originária (quando os cônjuges ou companheiros, submetidos ao regime da comunhão universal, já formaram a sociedade com a participação conjunta), quanto a derivada (quando apenas um deles era sócio, originariamente, e o outro adentra, posteriormente, nas cotas sociais da empresa). Porém, é importante atentar para o fato de que a restrição somente pode atingir pessoas que estão em união estável entre si e que sejam sócias na mesma pessoa jurídica, uma vez que não seria crível que a norma legal proibisse que as pessoas conviventes sob o regime de comunhão universal pudessem se associar com terceiros, em diferentes empresas.

O Enunciado 205 da Jornada de Direito Civil confirma ambos os raciocínios: “1) a vedação à participação de cônjuges casados nas condições previstas no artigo refere-se unicamente a uma mesma sociedade; 2) o artigo abrange tanto a participação originária (na constituição da sociedade) quanto a derivada, isto é, fica vedado o ingresso de sócio casado em sociedade de que já participa o outro cônjuge”.

  1. Alimentos na união estável.

Na conformidade com o art. 1.694 do Codex, que cimentou entendimento que vigorava de há muito, o companheiro tem reconhecido o seu direito de pleitear os alimentos de que necessite para subsistir, bem como para viver dignamente, de maneira compatível com a sua condição social. Tal como no casamento, na união estável os alimentos derivam do dever de mútua assistência (CC, art. 1.724) e da solidariedade familiar que pautam a vida afetiva.

Outrossim, impende fazer o registro de que na relação convivencial, assim como nas demais hipóteses, os alimentos exigem a comprovação do binômio necessidade de quem recebe e capacidade de quem presta. Os alimentos devem ser, apenas, os indispensáveis para a sua subsistência (chamados de alimentos naturais ou necessários), consoante previsão do § 2º do art. 1.698 do Código Civil, que mantém a chamada teoria da culpa, hodiernamente tão duramente atacada pela doutrina e pela jurisprudência em nosso ordenamento jurídico. Não significa que o companheiro perca o direito a receber os alimentos, por conta da culpa. Apenas altera-se o quantum da obrigação alimentar, fixando a pensão em percentual necessário, apenas, à sobrevivência do companheiro culpado.

Desse modo, percebe-se que, na contramão das novas trilhas palmilhadas pelo Direito das Famílias, sinalizadas pelas garantias constitucionais, o legislador civil permitiu que seja discutida a culpa na união estável para efeitos de fixação do quantum da obrigação alimentícia. Registre-se, por oportuno, que a culpa pela ruptura da união estável somente poderá ser suscitada para efeitos de fixação do valor do pensionamento, não possuindo qualquer outra função. Assim sendo, não se pode suscitá-la para outras finalidades, tais como perda do sobrenome, perda da guarda de filhos etc.

Aplaudimos a sólida e firme posição do Superior Tribunal de Justiça entendendo que as cláusulas de renúncia inseridas em ações dissolutórias de união estável são plenamente válidas e eficazes, inseridas no campo da autonomia da vontade. Assim, não é possível pleitear alimentos posteriormente se o companheiro a eles renunciou na dissolução da convivência, emprestando interpretação mais razoável ao art. 1.707 do Estatuto Civil (STJ, Ac. 3ª T., RO-HC 11.690/DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJU 19.11.2001).

  1. Direito aos benefícios previdenciários.

De há muito, o Decreto-lei nº 7.036/44 e a Lei nº 6.367/75 asseguravam o direito ao recebimento de benefícios previdenciários também nos antigos concubinatos. Já após o advento da Carta Magna, foi editada a Lei nº 8.213/91, dispondo sobre os planos de benefícios da Previdência Social e regulada pelo Decreto nº 357/91. O referido diploma legal, notadamente em seu art. 16, I, contemplou o companheiro ou a companheira como dependente do segurado, em idêntica situação ao cônjuge, estendendo-lhe também os benefícios previdenciários.

Veja-se, inclusive, que a sistemática legal não proíbe, sequer, a inscrição do companheiro pela pessoa casada. Todavia, mesmo que o companheiro não tenha sido inscrito previamente na Previdência Social, os direitos previdenciários podem ser, regularmente, reclamados, como vem orientando a melhor jurisprudência (STJ, Ac. 5ª T., REsp. 803.657/PE, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 25.10.2007, DJ 17.12.2007, p. 294).

Não se deixe de registrar que, em sede jurisprudencial, já se reconhecia que “em caso de acidente do trabalho ou de transporte a concubina tem direito de ser indenizada pela morte do amásio, se entre eles não havia impedimento para o matrimônio” (Súmula 35, STF). Também se reconheceu que “a companheira tem direito a concorrer com outros dependentes à pensão militar, sem observância da ordem de preferência” (Súmula 253, TFR).Registre-se, ademais, que há uma presunção absoluta de dependência em favor da pessoa que vivia em união estável, para fins de recebimento de benefícios previdenciários, da mesma forma que ocorre no casamento.

  1. Efeitos tributários.

A Lei nº 4.242/63, especificamente em seu art. 44, já permitia ao contribuinte – cujo casamento já estivesse dissolvido e sem obrigações com a sua ex-mulher – abater em sua declaração de Imposto de Renda os encargos com a sua companheira, desde que a relação já tenha ultrapassado os cinco anos. Atualmente, a matéria vem disciplinada pelo Decreto no 3.000/99, que, em seu art. 77, autoriza que o companheiro ou companheira venha a ser considerado dependente para efeito de redução do rendimento tributável, homenageando a proteção constitucional dedicada à união estável.

  1. Impenhorabilidade do bem de família.

Outro importante efeito jurídico patrimonial decorrente de uma união estável é a impenhorabilidade do bem (imóvel e móveis que guarnecem o lar) que serve de residência para o casal. Realmente, como evidencia Gustavo Tepedino, a preocupação central de nosso tempo é com “a pessoa humana, o desenvolvimento de sua personalidade, o elemento finalístico da proteção estatal, para cuja realização devem convergir todas as normas de direito positivo, em particular aquelas que disciplinam o direito de família, regulando as relações mais íntimas e intensas do indivíduo no social”. Por isso, pouco interessa se o ser humano vive em casamento ou em união estável, o que releva é protegê-lo integralmente, o que passa, seguramente, por garantir o reconhecimento do bem de família.

Na esteira desse raciocínio, de sólida base constitucional, foi proclamada a ideia da proteção ao bem da pessoa humana (seja ela casada, convivente, viúva, divorciada, solteira etc.), incorporada pela jurisprudência. A tese aqui esposada ganhou eco em nossos Pretórios, acolhida especialmente pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em passagens fantásticas como esta:

“Imóvel. Impenhorabilidade. A Lei 8.009/90, art. 1º, precisa ser interpretada consoante o sentido social do texto. Estabelece limitação draconiana de o patrimônio do devedor responder por suas obrigações patrimoniais. O incentivo à casa própria busca proteger as pessoas, garantindo-lhes o lugar para morar. Família, no contexto, significa instituição social de pessoas que se agrupam, normalmente por laços de casamento, união estável ou descendência. Não se olvidem ainda os ascendentes. Seja o parentesco civil, ou natural. Compreende ainda a família substitutiva” (STJ, Ac. 6ª T., REsp. 182.223/SP, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro).

VII. Conversão da união estável em casamento.

Com o nítido propósito de simplificar a celebração de casamento das pessoas que já vivem em união estável, o constituinte dispôs, no § 3º do art. 226, que a lei facilitará a sua conversão em casamento. Adveio, então, a Lei nº 9.278/96 que, em seu art. 8º, dispôs que estava facilitada a conversão da união estável em casamento, sem, contudo, explicitar o procedimento a ser seguido. Por isso, mereceu de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka a lúcida observação de “esta é a mais inútil de todas as inutilidades”.

Revogando a referida norma legal, foi editado o art. 1.726 do Texto Codificado, estabelecendo que a conversão da união estável em casamento será feita através de pedido dirigido ao juiz e assento no Registro Civil. Entretanto, não indicou, mais uma vez, o procedimento a ser seguido, obrigando a se seguir o procedimento comum de habilitação para o casamento, para que se apure a eventual existência de impedimentos matrimoniais.

Em primeiro plano, convém suscitar a inconstitucionalidade do citado dispositivo legal, uma vez que atenta frontalmente contra a determinação constitucional, uma vez que a Lex Fundamentallis manda facilitar a conversão da união estável em casamento, porém, o Código Civil torna o procedimento mais complexo e difícil ao exigir requerimento dirigido ao juiz, o que demanda a presença de advogado e o pagamento de custas processuais e honorários advocatícios. Dessa maneira, apresenta-se o texto da Lei Civil em rota de colisão com a norma constitucional.

De qualquer modo, importa registrar que a conversão da união estável em casamento dependerá, sempre, da comprovação da inexistência de impedimentos matrimoniais previstos no art. 1.521 do Estatuto Civil. Também cabe mencionar que o juiz poderá dispensar a realização de uma cerimônia de celebração do casamento uma vez que as partes já estavam convivendo.

Acrescenta Júlio César Bacovis, ainda, que, em face do caráter personalíssimo, o pedido de conversão tem de ser formulado por ambos os companheiros, na medida em que “a autonomia privada é a ideia fundamental do Direito Civil”. Uma vez manifestada a vontade de requerer a conversão, através, por exemplo, da outorga de procuração ao advogado para propor a ação, ainda que um dos companheiros venha a falecer, antes da efetiva conversão, não haverá impedimento ao deferimento do pleito de transformação. A regra geral é que os efeitos patrimoniais da conversão da união estável em casamento são ex nunc, não retroativos, mantendo-se, pois, a eficácia patroimonial da união estável até a data da celebração do casamento. Registre-se, porém, que, na hipótese de adoção do regime de comunhão universal quando da conversão de união estável em casamento, haverá uma necessária eficácia retroativa, em razão de própria essência desse regime de bens, que estabelece uma comunhão de todo o patrimônio do casal, inclusive dos bens adquiridos anteriormente.

Demais de tudo isso, considerada a possibilidade de caracterização de uniões estáveis homoafetivas, conforme decisão do Supremo Tribunal Federal em controle de constitucionalidade com eficácia vinculante (STF, Ac. Tribunal Pleno, ADIn 4277/DF, Rel. Min. Carlos Ayres Britto), tem de se perceber a possibilidade efetiva de conversão de união estável homoafetiva em casamento, consoante as mesmas regras da conversão da união estável heteroafetiva do dispositivo legal em comento. O próprio Superior Tribunal de Justiça já tem precedente no sentido de admitir o casamento homoafetivo (STJ, Ac. 4ª T., REsp. 1.183.378/RS, Rel. Min. Luís Felipe Salomão). Observe-se, por oportuno, que após o advento do Código Civil de 2002, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul editou os Provimentos nºs 27/03 e 39/03, tratando da conversão da união estável em casamento e modificando dispositivos da Consolidação Normativa Judicial daquele estado da Federação.

VIII. Aspectos processuais da união estável.

Antes mesmo do advento do Código Civil de 2002, o art. 9º da Lei nº 9.278/96, pondo fim a uma histórica controvérsia jurisprudencial, esclareceu que a competência para processar e julgar as ações envolvendo união estável era da vara de família, e não da vara cível. É que se a união estável caracteriza, consoante previsão constitucional, uma entidade familiar, a competência para conhecer os seus conflitos de interesses somente pode recair sobre o juízo da vara especializada de família, sob pena de negação da norma maior. A única exceção diz respeito aos direitos sucessórios, que devem ser reclamados na vara das sucessões, nas comarcas em que ela estiver destacada do juízo familiarista, como ocorre nos estados do Rio de Janeiro e de Alagoas, dentre outros.

Como corolário do reconhecimento da união estável como entidade familiar, decorre uma importante consequência processual, que é a tramitação das ações relativas à união estável em segredo de justiça – inteligência do art. 189, II, do Código de Processo Civil de 2015.

Outrossim, é de se afirmar que nas ações atinentes à união estável, havendo contumácia, desídia, do réu, deixando de apresentar resposta no prazo de lei, deverá o juiz decretar, como em qualquer outra demanda, a revelia. No entanto, nesses casos, quando estiver envolvido direito indisponível, a revelia estará desacompanhada dos seus regulares efeitos, aplicando-se a regra ínsita no art. 345, II, do Código Instrumental.

Ainda no campo do processo civil, importante registrar que o Código de Processo Civil de 2015, afastou do sistema jurídico brasileiro o injustificável foro privilegiado da mulher para as ações de divórcio e de anulação de casamento, por conta de sua absoluta incompatibilidade com a isonomia constitucionalmente assegurada entre as pessoas humanas. Com isso, se tornou certo e incontroverso que, não mais subsistindo foro privilegiado para a esposa, no casamento, também não mais se justifica qualquer benefício processual para a companheira, na dissolução da união estável. A regra agora emana do art. 53 do novo Código Adjetivo.

  1. Ações típicas da união estável.

A mais corriqueira ação utilizada pelos companheiros é, sem a menor sombra de dúvidas, a ação (declaratória e, portanto, imprescritível) de reconhecimento e dissolução de companheirismo. Essa declaração pode decorrer do mútuo consenso ou por provocação de apenas um dos interessados. A referida ação pode ser proposta de forma pura e simples – pretendendo, tão somente, o reconhecimento da existência de união estável entre as partes – ou cumulada com a partilha do patrimônio adquirido a título oneroso na constância da relação convivencial, determinada pelo art. 1.725 do Código Civil. A jurisprudência reconhece a possibilidade de propositura dessa demanda:

“A união estável é vínculo jurídico tutelado pelo Estado e gerador de direitos e deveres recíprocos que trazem profundas repercussões na esfera jurídica dos companheiros, existindo, portanto, interesse de agir em pedido de homologação judicial de acordo de dissolução de união estável, consoante jurisprudência deste Tribunal e do Colendo STJ” (TJ/DFT, Ac. 6ª T., Ap. Cív. 2005.01.1.028416-8, Rel. Desa. Ana Maria Duarte Amarante, DJU 8.11.2005, p. 153).

Reconhecido o direito hereditário do companheiro, por força da norma do art. 1.790 do Código Civil, é consequência lógica a legitimidade do companheiro para a propositura da ação de petição de herança, de modo a reconhecer a qualidade hereditária, bem como a posse e a propriedade dos bens transmitidos pelo falecido. Em verdade, a possibilidade de aforamento da petição de herança pelo companheiro submete-se aos mesmos requisitos de qualquer outra ação dessa índole, inclusive ao prazo prescricional de dez anos, como reza o art. 205 da Lei Civil.

Admitindo-se que, durante a convivência afetiva, somente os bens adquiridos a título oneroso serão admitidos como decorrentes do esforço comum dos companheiros e, por consequência, serão partilhados, infere-se, de regra, que cada um dos conviventes será proprietário e possuidor de seus bens particulares (aqueles adquiridos antes da convivência ou durante ela, a título gratuito) e dos bens adquiridos a título oneroso na constância da união estável (vide, a respeito, o art. 1.725, CC), salvo a existência de contrato de convivência.

Por isso, é possível o ajuizamento de ações possessórias (reintegração, manutenção de posse ou interditos proibitórios) pelo companheiro para a recuperação do bem (móvel ou imóvel) que esteja sendo possuído por apenas um deles, mas que não lhe pertença, por estar excluído da sua meação, por lei (CC, art. 1.725) ou por contrato de convivência. Processualmente, deve ser trilhado o procedimento estabelecido no art. 554 e seguintes do Código de Ritos de 2015, destinado às ações possessórias de força nova (aquelas cujo esbulho ou turbação ocorreu há menos de um ano e dia). Somente não será possível o manejo das possessórias quando o bem objeto da demanda tiver sido adquirido na constância do relacionamento, pois, em tal hipótese (salvo a existência de contrato expresso escrito, conforme salientado alhures), haverá absoluta presunção de colaboração e consequente partilha do bem.

Expresso o direito aos alimentos em favor daquele que vive em união estável pelo art. 1.694 do Código Civil, não se pode negar aos conviventes a possibilidade de propor não apenas a ação de alimentos, mas, igualmente, as ações de revisão de alimentos (inclusive com o mesmo procedimento da ação de alimentos, ex vi do art. 13 da Lei de Alimentos), de oferta de alimentos (art. 24 da mesma lei) e de exoneração de alimentos (pelo procedimento comum ordinário).

Conforme o registro de Carlos Roberto Gonçalves, “admite-se também, eventualmente, a oposição de embargos de terceiro pelo companheiro quando, como sucede comumente, é efetivada penhora em imóvel do devedor sem a sua citação, tendo ele meios de comprovar que sua aquisição ocorreu durante o tempo de convivência em união estável”. Realmente, o fato de ser reconhecido aos companheiros o direito à meação dos bens adquiridos, a título oneroso, na constância da relação, importa, inexoravelmente, em reconhecer ao companheiro (em cujo nome o bem, imóvel ou móvel, não foi registrado) o direito de embargar uma eventual penhora sobre o referido patrimônio, com o escopo de defender os seus direitos (no caso, a sua meação) sobre o bem.

  1. CONCLUSÃO .

No Brasil Contemporâneo não é possível aprisionar o Direito das Famílias nas relações derivadas do casamento, em face do caráter plural das entidades familiares afirmado pela Lex Fundamentallis. Assume o papel de setor do Direito Privado que disciplina as relações que se formam na esfera da vida familiar, enquanto conceito amplo, não limitado pelo balizamento nupcial. Tais relações que se concretizam na vida familiar podem ter origem no casamento, na união estável, na família monoparental (comunidade de ascendentes e descendentes) e em outros núcleos fundados no afeto e na solidariedade. Assim, hoje o Direito de Família, afirma-se como um conjunto de normas-princípios e normas-regras jurídicas que regulam as relações decorrentes do vínculo afetivo, mesmo sem casamento, tendentes à promoção da personalidade humana, através de efeitos pessoais, patrimoniais e assistenciais. A partir de um conteúdo visivelmente facilitado, o Direito das Famílias brasileiro organiza-se em sua estrutura interna (divisão tópica) em: (i) direito matrimonial das famílias (dizendo respeito ao matrimônio e seu regramento efetivo); (ii) direito convivencial das famílias (abrangendo a disciplina jurídica da união estável e das demais entidades não casamentárias); (iii) direito parental das famílias (regulamentando as relações decorrentes do parentesco e da filiação, oriunda das mais diversas origens); (iv) direito assistencial das famílias (cuidando das relações de assistência entre os componentes de uma mesma família, como no caso da obrigação alimentar).

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