Breves considerações sobre os impactos da pandemia do coronavírus nas relações privadas

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Autor: Marcos Ehrhardt Jr., Professor de Direito Civil da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e do Centro Universitário CESMAC. Correo electrónico: contato@marcosehrhardt.com.br

1. Não é fácil a tarefa de analisar as consequências de um evento de grande impacto social enquanto estamos vivenciando a própria situação a ser examinada. Falta-nos o distanciamento necessário quando novas informações surgem a todo o momento, graças a uma revolução tecnológica que reduziu distâncias e o tempo necessário para as interações sociais. Nesse cenário, o crescente fenômeno das “fake news” apenas agrava o problema.

Na verdade, não temos um único problema, mas sim uma origem comum (pandemia) para questões e litígios de várias ordens e graus de complexidade. É bem fácil sucumbir à falsa noção de que é possível encontrar uma única saída, vale dizer, uma solução padrão para todos os desafios que estamos a enfrentar.

Os últimos dias, com imposição de distanciamento social, não encontram precedentes na história de nosso país. Vivemos um teste decisivo para instituições democráticas e poderes constituídos, ao tempo que nossa própria compreensão de solidariedade social vem sendo colocada à prova, quer seja na fila do supermercado, quer seja nas decisões sobre o que fazer com empregados ou, ainda, nas relações com nossos vizinhos em um condomínio.

Ainda não temos informações suficientes para avaliar se as medidas tomadas serão efetivas ou precisarão ser revistas, quer seja para serem intensificadas ou abrandadas. Viver num país de dimensões continentais, no qual os efeitos da pandemia ocorrem em ritmos diferentes e as decisões tomadas por cada governo local apresentam importantes variações, não ajuda muito na tarefa de quem se propõe a examinar, sob o ponto de vista jurídico, o momento atual da crise.

Ademais, este é um bom momento para lembrar que o Direito não trará todas as respostas, pois o enfrentamento da questão necessitará de uma abordagem multi e transdisciplinar. É preciso a exata compreensão desta última constatação para que os julgadores que se depararem com questões urgentes sobre os efeitos da pandemia evitem ignorar a realidade dos fatos sociais em seus comandos judiciais, como, por exemplo, decisões sobre quem deve ter acesso a tratamento em UTI nos hospitais, uma vez que não é possível suprir toda a demanda. A escolha do tratamento, dentro das possibilidades, não pode ignorar critérios médicos baseados em evidências.

2. Na Teoria Geral do Direito Civil, podemos nos socorrer das regras acerca da impossibilidade de manifestação de vontade, ainda por causa transitória (inciso III do art. 4º do CC/02), que ensejam incapacidade para decidir questões atinentes a pacientes graves que, por estarem entubados e sedados, não apresentem condições de adotar providências em relação ao atendimento de saúde e demais atos da vida civil. Destacam ainda, as delicadas questões envolvendo a terminalidade da vida e diretivas antecipadas de vontade.

É ainda no campo da teoria geral e da presunção geral de capacidade, a ser interpretada em conjunto com o disposto no art. 9º da Lei 10.741/03 (Estatuto do Idoso), que podemos extrair a diretriz para garantir à pessoa idosa a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam um envelhecimento saudável e em condições de dignidade.

3. No campo das titularidades, as limitações impostas para o acesso aos bens de uso comum do povo, como parques e praias, atrai atenção para o disposto no art. 103 do CC/02, que estabelece a prerrogativa da administração de regular a forma de utilização desses bens, no interesse de todo a sociedade. Interessante e urgente reflexão há de ser formulada em relação aos espaços comuns em condomínios residenciais, a partir da constatação de que, nos termos do disposto no § 3º do art. 1.331 do Código Civil vigente, a unidade autônoma é parte inseparável das áreas comuns do prédio. Sendo, por conseguinte, o proprietário da unidade imobiliária, também o é das áreas comuns na proporção prevista na instituição condominial.

É preciso colocar em discussão os limites e as possibilidades das decisões de síndicos em todo o país sobre a utilização das áreas comuns, desde questões atinentes ao uso de academia, piscinas e quadras, até problemas relativos ao uso do elevador por condôminos que estão infectados pelo COVID-19 ou são profissionais da saúde e necessitam transitar pelas áreas comuns, até para terem acesso às suas unidades privativas.

Decisivo para o deslinde da questão é saber se decisões unilaterais do síndico configuram (ou não) medidas urgentes no benefício da coletividade de condôminos e se necessitam ser ratificadas ou, ainda, se podem ser alteradas pela Assembleia. Em princípio, parece que o melhor encaminhamento é avaliar se a adoção de tais medidas configura impedimento reflexo e abusivo ao uso das áreas privativas, sendo necessário, em qualquer contexto, bom senso para se perceber que existirão situações excepcionais que precisam ser avaliadas individualmente.

Ainda no campo das titularidades, é possível constatar que as limitações de acesso e funcionamento impostas a estabelecimentos privados (lojas, restaurantes, cinemas, teatros, academias, entre outros) implicaram diversas situações conflituosas no universo do direito obrigacional. Juntem-se a isso as restrições ao transporte público e os cancelamentos de voos, pelos mais variados motivos, que passam inclusive pelo fechamento das fronteiras para viajantes de localidades atingidas mais gravemente pela pandemia.

4. São inúmeras as situações em que obrigações contratuais se tornaram inúteis ao credor, ou hipóteses em que o cumprimento da avença se tornou impossível ou extremamente oneroso. Diante da escolha entre revisar, resilir ou resolver, resta aos operadores jurídicos lidar com esses problemas utilizando as ferramentas disponíveis em nosso ordenamento.

De início, há que se estabelecer uma premissa essencial: não se pode adotar a mesma perspectiva para contratos paritários e contratos massificados de consumo. O caminho para a construção de soluções negocias passa pela análise do caso concreto, sem perder de vista que a Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019, que instituiu a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, estabelecendo garantias de livre mercado, introduziu importante alteração no art. 421 do Código Civil, que passou a conter um parágrafo único com a seguinte redação: “nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual”.

A leitura do dispositivo citado permite extrair a conclusão da impossibilidade de soluções genéricas, apontando para a revisão contratual de modo indistinto e uniforme a diversas espécies contratuais sem análise das peculiaridades do caso concreto, o que demandará bastante do Poder Judiciário nos próximos meses.

Diante de um quadro no qual o ritmo das decisões judiciais costuma estar em descompasso com os interesses e as necessidades empresariais, alternativas para a resolução extrajudicial de tais conflitos devem ser priorizadas em prol da conservação dos negócios jurídicos, o que configura um momento importante para a celebração de compromissos arbitrais e a adoção de técnicas de mediação empresarial inspiradas pelo dever geral de boa-fé objetiva; esta impõe às partes a obrigação de adotar um comportamento colaborativo e legal com o objetivo de se alcançar o melhor adimplemento possível para todos os figurantes da relação negocial.

No que diz respeito aos contrários paritários, há quem enquadre a pandemia do coronavírus como uma questão de força maior, portanto, um evento natural, e , como tal, “externo, inevitável e alheio às ações de uma das partes”, que tem por consequência eliminar ou limitar a responsabilidade por danos ou outras perdas resultantes de tais eventos. Contudo, a mera alegação de força maior, sem demonstração concreta do impacto efetivo no negócio, não é suficiente para a eficácia exoneratória pretendida.

Desse modo, as técnicas de hermenêutica contratual passam a ocupar posição fundamental, sobretudo diante da nova redação do art. 113 do Código Civil, introduzida pela já citada Lei nº 13.874/19. Merece destaque o teor do inciso V do referido dispositivo, a preconizar que a interpretação deve corresponder “a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração”.

O cenário da pandemia do COVID-19 será um importante referencial para compreender como os tribunais brasileiros aplicarão a Lei de Liberdade econômica num cenário em que a denominada “racionalidade econômica das partes” será ponderada com a necessidade de sobrevivência ou não do próprio figurante no mundo negocial, expondo significativas assimetrias entre pequenos e grandes empresários.

Para o julgador que deverá decidir pela intervenção ou não na avença negocial, será importante levar em consideração se a pandemia do COVID-19 foi a causa exclusiva do inadimplemento contratual e, para tanto, poderá investigar se outros contratos congêneres também deixaram de ser cumpridos no mesmo período. Assume relevância, no momento de surgimento da pandemia, a análise do comportamento posterior de ambos os contratantes, para se perquirir se medidas necessárias e indispensáveis à mitigação dos danos ao objeto contratual foram adotadas.

Merece destaque o dever de informar, dada a exigência de transparência e cooperação, que encontra fundamento no dever geral de boa-fé objetiva. Será que foi adotado pelo contratante algum plano de contingência? Seria efetivamente e/ou economicamente possível a adoção de alguma medida de tal natureza? A outra parte foi ao menos notificada das dificuldades e das medidas adotadas? Tais medidas foram adotadas em tempo hábil? Qual o impacto da intervenção do Poder Público na liberdade de agir dos figurantes do negócio?

5. O raciocínio apresentado até este ponto é adequado para as situações em que um dos contratantes não consegue adimplir com suas obrigações, que continuam sendo do interesse do credor. Mas é possível vislumbrar situações em que se verificará a frustração do objeto negocial. Nesses casos, a premissa seria que a impossibilidade do objeto ocorreu por fato que não pode ser imputado a nenhum dos contratantes. Uma vez demonstrada a “perda superveniente do objeto” ou, ainda, a “impossibilidade jurídica” deste, v. g., por proibição legal (vide atos governamentais que proibiram funcionamento de casas de show e teatros para evitar aglomerações e prevenir contágio), resolver-se-ia a avença, retornando as partes ao status quo ante, conforme prescrevem os arts. 248 e 250 do Código Civil.

Há ainda situações em que a impossibilidade do objeto será apenas parcial ou temporária, devendo-se ter em consideração se se está diante de hipótese de contratos de longa duração, para verificação da adequação da pretensão de quem procurou o Judiciário por não conseguir uma solução negocial para a questão.

Voltando os olhos para o contexto das relações de consumo, não se pode deixar de considerar que muitos fornecedores de produtos e serviços estão impossibilitados de cumprir com suas obrigações contratuais, ao tempo que consumidores deixam de ter interesse no objeto do negócio contratado ou experimentam dificuldades para efetuar pagamento de obrigações contraídas antes do início da pandemia.

A disciplina legal do Código de Defesa do Consumidor parece insuficiente para lidar com todas as possibilidades de questões atinentes à pandemia do COVID-19, sendo importante não confundir as hipóteses de recusa ao cumprimento da oferta, descritas no art. 35, com a impossibilidade superveniente do objeto, desde que adequadamente demonstrada no caso concreto. Uma alternativa possível seria dialogar com as soluções previstas no Código Civil, aqui já referidas, atentando para as peculiaridades de uma relação em que a vulnerabilidade de uma das partes costuma ser fundamento para a integral imposição do risco da atividade aos fornecedores.

6. Para além do campo obrigacional, resta concluir estas primeiras reflexões com alguns comentários sobre questões relativas ao direito de família, mais precisamente, sobre a convivência entre pais e filhos. Em tempos de isolamento e/ou distanciamento social, a pandemia não pode servir de subterfúgio para a adoção de medidas de alienação parental, prejudicando os superiores interesses de crianças e adolescentes, sob o pretexto de preocupação com a saúde e segurança, sem demonstração concreta e objetiva da impossibilidade de acesso de um dos genitores aos seus filhos, ainda que a distância e por meios eletrônicos.

Os interesses que devem prevalecer são aqueles dos próprios menores, que têm direito de conviver com ambos os genitores, sempre que isso for possível, sem colocar a sua própria vida em risco ou a de pessoas ao seu redor, em especial idosos e grupos de vulneráveis, por apresentarem alguma doença crônica. Em tempos de pandemia, não podemos esquecer a diretriz do art. 694 do Código de Processo Civil, que dispõe que nas ações de família, todos os esforços serão empreendidos para a solução consensual da controvérsia. É preciso exercitar os verbos dialogar, compreender, refletir e proteger, colocando interesses e conveniências estritamente pessoais em segundo plano, porquanto se trata de um problema da entidade familiar, e não do indivíduo.

A palavra de ordem deve ser bom senso. Dias de visita que não forem concretizados podem ser compensados num futuro próximo; comunicação por redes sociais e informes periódicos da situação dos menores podem ser adotados, quando o exercício de guarda compartilhada ou outros arranjos, como dias de visita, não puderem ocorrer sem prejuízo à saúde e à segurança dos envolvidos.

Há de se considerar que numa situação de excepcionalidade, as regras sobre convivência, guarda e visitas estabelecidas por acordo ou em juízo podem necessitar de uma adaptação temporária, a ser estabelecida de comum acordo, sempre que possível. A diversidade de situações e os objetivos deste texto não permitem maiores digressões sobre o tema, mas não se pode deixar de considerar a importância de tais reflexões num cenário no qual muitos trabalhadores autônomos não conseguirão honrar as obrigações alimentares, total ou parcialmente. A mudança das circunstâncias econômicas e de dinâmica de interação social, em tempos de teletrabalho e de novas rotinas em todos os lares brasileiros, deve ser sopesada no caso concreto, não sendo possível a aplicação de soluções abstratas definidas a priori.

O ano começou de um modo diferente do que todos pensavam. Teremos de construir respostas para os novos desafios que se tornaram parte do nosso cotidiano, tendo como ponto de partida uma ética de alteridade e respeito aos valores constitucionais que colocam a pessoa humana no centro de nossas preocupações. Que possamos superar essas dificuldades reafirmando nossa resiliência para enfrentar os problemas através do diálogo que leva ao convencimento do próximo, e não à sua submissão através da força.

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