A crise do COVID-19, entre boa-fé e comportamentos oportunistas

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Autor: Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk, Professor de Direito Civil da UFPR. Doutor e Mestre em Direito pela UFPR. Advogado e Árbitro. Correo electrónico: carlospianovski@fachinadvogados.com.br

1. O presente artigo se propõe à reflexão sobre o papel da boa-fé e da causa concreta dos contratos como ferramentas relevantes para a compreensão dos efeitos gerados pela pandemia da COVID-19 sobre os contratos.

Se a força obrigatória dos contratos pode e deve se manter hígida na maioria dos casos – sempre com prestígio ao papel criativo da autonomia privada, nas prováveis renegociações -, haverá, é certo, no grave tempo de exceção em que vivemos, espaço para, em alguns casos, à luz do ordenamento vigente, o emprego das medidas excepcionais da resolução e da revisão contratuais, bem como da força maior, ainda que transitória, a afastar a mora em alguns contratos.

O tempo de crise dá azo, porém, à emergência de comportamentos oportunistas dos agentes econômicos, sejam eles credores ou devedores. O que se propõe neste texto é um exame, ainda que preliminar, do enquadramento conceitual e de algumas respostas que a ordem jurídica pode oferecer contra esses comportamentos oportunistas.

Para esse escopo, algumas precisões conceituais devem ser feitas, para que se possa compreender, à luz do arcabouço normativo que constitui a expressão jurídica do fenômeno contrato, mediante quais instrumentos o direito posto rechaça tais comportamentos.

2. O processo obrigacional, como descreve CLOVIS DO COUTO E SILVA em sua consagrada tese (A obrigação como processo, FGV, Rio de Janeiro, 2006), desenvolve-se de modo dinâmico, em várias fases, que parte do momento pré-contratual, passa pela celebração da avença, segue em sua fase de execução e, mesmo após o fim desta, pode gerar eficácia pós-contratual.

Como efeito, como na expressão de LUIZ EDSON FACHIN, o contrato não principia apenas com sua celebração, e, da mesma forma, “o contrato não acaba quando termina” (Direito Civil: Sentidos, transformações e fim, Renovar, Rio de Janeiro, 2015, p. 106).

Essa obrigação vista como processo é dirigida a um fim, que opera como um vetor a definir o itinerário do fenômeno contratual – e que, permitimo-nos dizer, é tese que se valida pela estreita e realista conjugação que apresenta com o contrato como operação econômica.

O fim do contrato é o bom adimplemento. É necessário, pois, refletir sobre em que consiste esse “bom adimplemento” no Direito contratual contemporâneo, no qual “quem contrata não contrata só o que contrata”, para empregar, novamente, a feliz expressão de LUIZ EDSON FACHIN.

O bom adimplemento importa não apenas a realização da prestação como originalmente pactuada, em uma fotografia estática, mas, também, o atendimento dos deveres laterais inerentes à boa-fé, que emergem da sua função hermenêutico-integrativa, conforme ensina JUDITH MARTINS-COSTA (A Boa-fé no Direito Privado. Critérios para sua aplicação, Saraiva, São Paulo, 2018). Esses mesmo deveres, em interessante dialética, são o móvel que impulsiona as condutas das partes ao longo do processo obrigacional.

Todavia, não é só isso. Pode-se afirmar que não há bom adimplemento quando há a frustração da causa concreta do contrato. Causa concreta, diversamente da causa abstrata, definida, entre outros, por EMILIO BETTI, consiste, na lição de JUNQUEIRA DE AZEVEDO, no objetivo prático visado pelas partes quando da celebração do negócio jurídico (não se confundindo, pois, com os motivos), sendo estes, pois, um fim a que se dirige dado negócio jurídico específico (Negócio Jurídico: Existência, Validade e Eficácia, Saraiva, São Paulo, 2002).

Esse fim é imantado pelo que se pode denominar de função econômica do contrato, ou seja, quais os contributos econômicos que as partes razoavelmente podem esperar como advindos da relação negocial celebrada. A definição desse fim econômico prático que integra a causa concreta não é estranha ao exercício da liberdade econômica.

É certo que a dimensão funcional dos contratos não se restringe a essa causa concreta, de caráter econômico, a ela podendo ser agregada a função social de caráter normativo (nos contratos que a têm), e a função como liberdade, que pode se realizar, inclusive, como liberdade substancial dos indivíduos (PIANOVSKI RUZYK, C. E.: Institutos fundamentais do direito civil e liberdade(s), GZ, Rio de Janeiro, 2011). A análise desses conceitos, porém, demanda reflexão específica, que excede o escopo do presente artigo.

Poderíamos dizer, pois, em uma leitura sistemática da expressão normativa contemporânea desse fenômeno econômico espontâneo a que chamamos contrato, que é a própria liberdade econômica dos contratantes que informa o itinerário do processo obrigacional, uma vez que é ela que define essa expressão funcional que constitui a causa concreta do contrato.

A liberdade econômica não define apenas o retrato estático das prestações no momento da celebração do contrato (definido no exercício da autonomia privada, como uma das expressões dessa liberdade), mas se projeta para as finalidades econômicas concretas a que se dirige o processo obrigacional.

Se a liberdade econômica é o que pauta o ponto de partida do processo obrigacional (desde a fase de tratativas) e projeta os seus fins concretos, a boa-fé é o princípio que, mediante a função hermenêutico-integrativa, impulsiona as condutas das partes para esse bom adimplemento. Os deveres derivados da boa-fé, embora avolitivos, não são alheios à liberdade econômica. Ao contrário, são a ela instrumentais, na medida em que conduzem à causa concreta definida por meio do exercício dessa mesma liberdade.

O papel da boa-fé não se esgota, entretanto, na função hermenêutico-integrativa. É ela, também, integrada pela função de controle do exercício abusivo de direitos. Este é um campo fértil para o exame do enquadramento jurídico das condutas oportunistas, conforme será possível constatar no curso deste artigo.

3. A doutrina da “Law and Economics” se ocupa, desde as origens, dos comportamentos oportunistas.

WLLIAMSON, por exemplo, qualifica o oportunismo como “busca de interesse próprio com dolo” (“Transaction-cost economics: the governance of contractual relations”, Journal of Law and Economics, 22, 233–261). No âmbito dos contratos, a definição de FERNANDO ARAÚJO é exemplar, consistindo no “facto de uma das partes, ou até ambas reciprocamente, poderem fazer degenerar a prometida conduta de cooperação numa conduta de apropriação de ganhos à custa dos interesses e expectativas da contraparte” (“Uma análise económica dos contratos – a abordagem económica, a responsabilidade e a tutela dos interesses contratuais”, Direito & Economia, TIMM, Luciano Benetti (Org.), Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2008, p. 115).

Sem acolher as pretensões de construção de uma nova teoria do contrato à luz dos pressupostos da economia, é inegável que o diálogo entre os saberes é fundamental, notadamente porque, no plano lógico, antes de ser um instituto jurídico, o contrato é uma operação econômica espontânea.

Nessa senda, evidencia-se uma conjugação entre a pretensão econômica de evitar comportamento oportunistas (para evitar elevação de custos de transação) e a pretensão jurídica de respeito aos ditames da boa-fé (atendendo a valores relevantes para o Direito).

O comportamento leal, em contemplação à confiança legítima pautada na causa concreta do contrato, é a antítese do comportamento oportunista.

A busca pelo benefício próprio é inerente às relações econômicas, e é o móvel da própria livre iniciativa – cujo valor social intrínseco deriva de suas reconhecidas externalidade positivas. O que não é desejável, nem para a Economia, nem para o Direito, é a conduta que, em busca desse benefício próprio, sejam empregados meios desleais.

Momentos de crise, nos quais as necessidades econômicas se agravam, podem ser férteis ao incremento indesejável desses comportamentos.

Mais que isso: a depender da resposta do Direito à crise – especialmente, por meio da atuação do Poder Judiciário -, pode ela se converter em incentivo a comportamentos oportunistas.
Cabe, destarte, o cuidadoso manejo do instrumental técnico-normativo para coibir esses comportamentos, sendo o princípio da boa-fé, em sua adequada aplicação, um relevante meio para essa finalidade.

4. A força obrigatória dos contratos é a regra mesmo em momento de grave crise, de modo que uma moratória universal não encontra respaldo no ordenamento jurídico – que, reitere-se, já contém normas para as situações excepcionais.

Há, é certo, o espaço para a inexigibilidade de certas obrigações, com afastamento da mora quando a impossibilidade objetiva deriva dos efeitos advindos da pandemia, com inimputabilidade à esfera do devedor, bem como para a resolução e, mesmo, para a revisão de dados contratos, à luz de hermenêutica sistemática das regras vigentes.

Daí porque, em regra, não há espaço no ordenamento jurídico, mesmo no âmbito da grave crise gerada pelo COVID-19, para pretensões de afastamento da mora apenas pela dificuldade subjetiva de prestar decorrente de redução de fluxo de caixa ou, ainda menos, pelo intento de não ter que recorrer a reservas financeiras ou, mesmo, obtenção de crédito.

A recente norma de emergência alemã, de 27 de março de 2020 é um exemplo candente de como iniciativas legislativas que modifiquem as “regras do jogo” quanto aos critérios de definição da mora ou de seu afastamento podem gerar, como externalidades indesejadas, comportamento oportunistas.

A regra, que no parágrafo 2º do seu artigo 5º versa especificamente sobre contratos de locação, residenciais ou não, dispõe que “o proprietário não pode resolver um contrato de locação de imóveis apenas apenas pelo fato de o inquilino não pagar o aluguel no período de 1 de abril de 2020 a 30 de junho, a despeito da data de vencimento”.

Isso foi o bastante para que grandes empresas declarassem que suspenderiam os pagamentos dos alugueres. Foi somente após a repercussão pública, inclusive governamental, que ao menos uma delas retrocedeu (cf. FRITZ, K.: “Lei alemã para amenização dos efeitos do coronavírus altera temporariamente o direito de locação”, German Report, Migalhas, 31 de março de 2020).

Não apenas o legislador, porém, pode oferecer incentivos que gerem comportamentos oportunistas como indesejadas externalidades, mas, também – e, quiçá, sobretudo – a atuação jurisdicional.

A ausência de critérios para suspender a mora ou seus efeitos, ou para efetuar a revisão contratual, pode não apenas estimular comportamento oportunistas no âmbito de uma incontida judicialização das relações contratuais, mas, também, inibir o atendimento do dever de negociação derivado da boa-fé, e que se desenvolve sob o pálio da racionalidade própria da autonomia privada.

A certeza, ou, ao menos, a forte perspectiva de uma tutela paternalista da jurisdição, mesmo em casos nos quais não se configure impossibilidade objetiva (para fins de afastamento da mora) ou efeitos graves sobre o atendimento da causa concreta do contrato, que excedam a alocação normal dos riscos entre as partes, pode ser elemento que venha a estimular o incumprimento por parte de quem tem não apenas o dever, mas as condições econômico-financeiras para o adimplemento das obrigações.

A atuação jurisdicional na concessão das tutelas de exceção deve ser pautada pela ratio de maximização da boa-fé objetiva, rechaçando pretensões marcadas pelo traço da deslealdade e do abuso do direito, que pode se expressar no desvio de finalidade dos instrumentos revisionais ou de afastamento da mora.

5. Se, de um lado, é necessário rechaçar eventuais comportamentos oportunistas do devedor, não se pode olvidar que, em casos nos quais os efeitos extraordinários da pandemia efetivamente repercutem sobre o vínculo contratual, a boa-fé exige do credor comportamentos de cooperação (EHRHARDT Jr., M.: Responsabilidade civil pelo inadimplemento da boa-fé, Fórum, Belo Horizonte, 2017), que, se não levados a efeito, também se caracterizarão como comportamentos oportunistas vedados pelo ordenamento.

A inviabilização do programa obrigacional, pela aniquilação da sua função econômica, pode implicar a inexigibilidade de prestações como originalmente pactuadas. Isso se deve ao fato de que essa inviabilização do programa obrigacional também se refere à sua causa concreta, haja vista que a noção de “bom adimplemento” que define o fim contratual é por esta também integrado (assim como pela função social e pela função como liberdade, que, todavia, não o são objeto deste texto).

Essa frustração da causa concreta pode demandar resolução ou excepcional revisão – caráter de que pode se revestir a situação de exceção decorrente da pandemia -, desde que não imputável, por evidente, à conduta do próprio devedor ou à esfera de riscos razoáveis a ele alocados. A exceção, como se sabe, já tem previsão no sistema, e, quando se materializa, justifica o emprego do remédio previamente definido nas “regras do jogo” que balizam a própria liberdade econômica (art. 421, parágrafo único).

Isso em nada conflita, cabe reforçar, com a ratio da liberdade econômica contemplada pela lei e pela Constituição (Artigos 1º, inciso IV, e 170), uma vez que a intervenção mínima é aquela que se admite, reitere-se, apenas em situação de exceção – que é como se podem qualificar muitas das repercussões da pandemia sobre os vínculos contratuais.

Essa intervenção corretiva, que pode implicar revisão contratual, é congruente com a liberdade econômica que perpassa o contrato como figura dinâmica, que não se esgota no momento genésico da escolha levada a efeito por meio da autonomia privada, mas se dirige, como visto, a uma causa concreta, integrada por fins econômicos – à qual pode se agregar, conforme a natureza do contrato, uma função social.

Exigir a prestação tal como pactuada, recusando-se a negociar de boa-fé e, assim, contribuir para a frustração da causa concreta, pode ser, ainda que em casos obviamente excepcionais, um comportamento oportunista do credor, violador dos deveres de cooperação inerentes à boa-fé, os quais, reitere-se, vivificam o sentido de autorresponsabilidade inerente à liberdade econômica.

Se a boa-fé, em regra, sob o pálio da confiança legítima, é fundamento para a força obrigatória dos contratos (ao lado do valor jurídico da promessa), ela pode, em situações de exceção, nas quais o programa obrigacional é gravemente afetado, com ofensa à função econômica concreta do contrato, caracterizar hipótese de mitigação dessa força obrigatória.

É por isso que, excepcionalmente (e em apenas aparente paradoxo), exigir uma prestação tal como originalmente pactuada pode ser uma conduta oportunista, quando se der diante da alteração superveniente de circunstâncias com efeitos imprevisíveis e extraordinários sobre o programa obrigacional e que enseje a frustração da função econômica concreta da própria obrigação, com recusa à renegociação imposta pela boa-fé. Nesses casos, a conduta do credor pode se subsumir à figura do abuso do direito, nos termos do artigo 187 do Código Civil.

Embora, abstraído o abuso do direito, a revisão e a resolução possam se fazer possíveis atendidos aos critérios sistemáticos dos artigos 317, 478 e 421, parágrafo único – em conjugação com os ditames do Regime Jurídico Emergencial e Transitório -, eventual não atendimento do requisito da “extrema vantagem” para uma das partes pode ser suprido pela incidência, em face do credor, da regra que veda o abuso do direito. Trata-se de inibir o comportamento oportunista e incentivar o comportamento cooperativo, inerente aos deveres da boa-fé.

Em tais situações, remarque-se, excepcionais – mas que, por certo, virão à tona no âmbito dos também excepcionais efeitos econômicos da pandemia -, o remédio revisional poderá ser aplicado, sem que isso importe em violação à liberdade econômica, e em consonância com os ditames da Ordem Econômica constitucional.

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