Autora: Maria Inês de Oliveira Martins, Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Membro do Instituto Jurídico da Universidade de Coimbra. Correo electrónico: mivom@fd.uc.pt
1. Uma primeira pergunta que se coloca é a de saber quais as coberturas seguradoras que podem ser especialmente problemáticas – ou seja, especialmente accionadas em contexto de pandemia.
Tratar-se-á presumivelmente, no imediato, das que cubram riscos de cancelamento de viagens e eventos; no curto/médio prazo, das que cubram riscos de saúde e de incapacidade, riscos de vida e ciberriscos; no médio prazo, destacam-se as coberturas de lucros cessantes não ligado a danos numa coisa (vg., por interrupção de uma cadeia logística), bem como as coberturas ligadas a eventos de crédito (seguros de crédito e de caução/garantia), a par, novamente, das coberturas de ciberriscos.
Com o maior accionamento destas coberturas, emerge a divergência de interesses entre seguradores e segurados. Se os seguradores concordarem geralmente em prestar, podem enfrentar desembolsos muito significativos; e, caso adoptem a estratégia de se recusar a prestar, os segurados podem então ver a cobertura recusada ou a vigência do contrato terminada.
2. A recusa da cobertura depende de o segurador invocar com sucesso cláusulas de exclusão da cobertura ou o não acatamento de deveres de controlo do risco. O que, por sua vez, depende da interpretação do contrato de seguro, determinando o âmbito do risco coberto e interpretando cláusulas de exclusão e de imposição de deveres de conduta.
A este respeito, não se deve esquecer que estamos perante contratos geralmente de adesão, celebrados com recurso a cláusulas contratuais gerais. Como tal, estes devem ser interpretados de acordo com as expectativas legitimamente formadas por um declaratário normal à luz da finalidade do concreto contrato (da protecção que o contrato concretamente deveria conferir face aos interesses em causa, para que tivesse utilidade). Em caso de dúvida, vale a doutrina contra proferentem.
Certas exclusões gerais, ou previsões gerais de deveres de conduta, podem ser especialmente invocadas no presente contexto. Vale a pena referir um caso debatido em Portugal, perante o pano de fundo dos diplomas legais sobre estado de emergência, e das suas normas que limitam os casos em que é lícita a circulação, inclusivamente automóvel. Perguntou-se se, caso alguém circulasse de automóvel fora das hipóteses permitidas pelo regime do estado de emergência, preencheria uma cláusula prevista num seguro facultativo de responsabilidade civil automóvel, ou num seguro de acidentes pessoais, que excluísse a cobertura das consequências de actos praticados em contravenção a normas legais ou regulamentares aplicáveis. Não parece, porém, que a cláusula de exclusão opere nestes casos. A norma violada, integrante do diploma sobre estado de emergência, não visa prevenir riscos de acidente, mas sim riscos de contágio, pelo que não há causalidade entre violação da norma e sinistro potencial. E, em qualquer caso, a exclusão é um facto impeditivo do direito do segurado, pelo que caberia ao segurador o ónus da prova de que tal exclusão se preencheu (incluindo desde logo a prova de que o segurado não utilizava o veículo ao abrigo de uma das hipóteses em que tal é autorizado). De resto, após o surgimento deste debate nos meios de comunicação portugueses, algumas seguradoras prontamente esclareceram que não equacionavam invocar tais exclusões nessas hipóteses.
3. Mesmo que não ocorra um sinistro, quando, perante a cobertura em causa, o contexto de pandemia torne a sua ocorrência mais provável, o diferendo pode emergir. O segurador pode querer desembaraçar-se do contrato, deixando-o caducar ou não o renovando, quando o contrato for a prazo; pode denunciá-lo ou rescindi-lo, mas só quando tal seja admissível. Tal poderá ser especialmente visível no caso de seguros cujo risco se tenha agravado, e que comportem vários sinistros ao longo da sua vigência. Pense-se, por exemplo, no seguro de crédito, pelo qual o credor se protege do risco de não cumprimento pelos seus devedores.
Em qualquer caso, pode equacionar-se se a cessação do contrato é lícita ou se defrauda expectativas legitimamente criadas. Porém, para evitar incertezas e desigualdades, é uma matéria em que pode ser aconselhável intervenção através de leis especiais para o contexto da pandemia.
4. Perguntar-se-á ainda se podem neste momento ser celebrados seguros que protejam face a impactos do Covid 19. Colocam-se aqui problemas de descaracterização do contrato de seguro, e de limitação dos negócios que as seguradoras podem licitamente celebrar (e que tipicamente são apenas seguros e operações conexas, bem como actos instrumentais face a este âmbito).
A solução é linear para os casos de inexistência do risco: aqueles em que o sinistro já ocorreu naquela esfera concreta, ou tornou-se impossível a sua ocorrência. Seria o caso de se celebrar com a data de hoje um seguro de cancelamento de um evento público, quando já se proibiu a realização de eventos públicos em geral. Neste caso, o contrato não pode produzir efeitos como contrato de seguro, pois já não se refere a um risco, mas a uma certeza, dando lugar a dois pagamentos certos (o do prémio contra o da indemnização). O Direito português prescreve directamente a nulidade para estes contratos (44.º do RJCS); ainda que assim não fosse, ela decorreria do facto de os seguradores não terem normalmente autorização para este tipo de negócio.
Diferentes destes são os casos em que a verificação do sinistro é de elevadíssima probabilidade. Aqui, há que determinar se, ao tempo da celebração do contrato, aquele risco era de verificação tendencialmente certa, de modo a que já não se possa falar de um risco e de um seguro. Mesmo riscos de elevada probabilidade podem ser cobertos (vg., um seguro de incapacidade temporária por saúde de um médico do serviço de cuidados intensivos, neste contexto), desde que haja oferta e procura de cobertura para eles.
5. Uma outra questão discutível é a de saber se os seguradores podem reportar-se a um agravamento do risco em termos gerais, por se ter declarado situação de pandemia, ou de estado de emergência. Ou seja, se podem invocar o regime do agravamento do risco, que permite a modificação do contrato ou sua resolução.
A resposta a esta questão é negativa. O regime do agravamento do risco tem que ver com alterações daquela esfera de risco em concreto, dialogando com a avaliação inicial que o segurador fez do risco daquele segurado (através de questionários, exames médicos, inspecções, consulta de registos,…), pela qual mensurou o risco que concretamente suportaria e fixou o prémio em conformidade. A variação de riscos gerais corre por conta do segurador, devendo estar reflectida nas estatísticas e estimativas de que este se serve; o segurador é exactamente o perito na avaliação dos riscos. De outro modo, far-se-ia retornar à esfera do segurado a falha do segurador em, ao fixar os prémios, tomar em consideração dados estatísticos adequados e estimativas prudentes.
De resto, os regimes que permitem a cessação ou modificação do contrato prevêem prazos estritos (os ordenamentos europeus gravitam em torno do prazo de um mês) para a sua invocação pelo segurador. Ora, desde Janeiro que se sabe da existência de uma epidemia em território chinês, e da sua grande transmissibilidade; e os primeiros casos concretos de infecção foram detectados na generalidade dos países europeus nos meses de Janeiro e Fevereiro – há bem mais de um mês, portanto.
Uma questão contígua é a de saber se a presente alteração do estilo de vida dos sujeitos, determinada pelo confinamento doméstico em contexto de estado de emergência, poderá configurar agravamento de certos riscos na esfera do sujeito em concreto. Tratar-se-ia, por exemplo, de argumentar que o risco de incêndio pelo facto de trabalharmos a partir de casa. Não se pode, porém, concluir sem mais nesse sentido. Há vários pressupostos para a aplicação do regime do agravamento (de outro modo, o seguro não cumpriria a sua finalidade de permitir a planificação da actividade económica dos sujeitos) e um deles é que, no cômputo geral das circunstâncias que se modificaram o saldo seja de agravamento. Se a alteração de circunstâncias traz factores que diminuem e factores que agravam o risco, eles compensam-se entre si. E estar mais em casa também é estar mais vigilante a possíveis focos de incêndio, o que é um factor de diminuição do risco.
6. A respeito das modificações do risco seguro, há no ordenamento português um dado normativo muito recente, e de toda a relevância. Trata-se do Decreto-lei que «estabelece um regime excecional e temporário relativo aos contratos de seguro, no âmbito da pandemia da doença Covid-19», aprovado no dia 7 de Maio em Conselho de Ministros, e cujo texto ainda não é conhecido. De todo o modo, nos termos do Comunicado divulgado no site do Governo (https://www.portugal.gov.pt/pt/gc22/governo/comunicado-de-conselho-de-ministros?i=345), «nos contratos de seguro em que se verifique a redução significativa ou mesmo a eliminação do risco coberto, em decorrência direta ou indireta das medidas legais de resposta à epidemia, estabelece-se o direito de os tomadores de seguros requererem o reflexo dessas circunstâncias no prémio, assim como a aplicação de um regime excecional do seu fracionamento».
Resta, pois, conhecer os pormenores da regulação. E, no plano dos efeitos práticos, resta saber se esta possibilidade dará impulso à invocação do regime simétrico, de agravamento do risco, por parte dos seguradores.
7. De acordo com o referido comunicado de Conselho de Ministros, este mesmo diploma aborda também uma outra questão da maior importância: a das consequências da falta de pagamento do prémio.
O regime português do não pagamento do prémio de seguro é, além de pouco transparente (designando por «regime especial» aquele que é na verdade o regime geral e absolutamente imperativo – arts. 58.º e ss. RJCS), draconiano nas suas consequências, obedecendo a uma lógica estrita de «no premium, no risk». Assim, a cobertura do risco depende do prévio pagamento do prémio: a falta de pagamento da primeira fracção do prémio determina a cessação automática do contrato a partir da data da sua celebração e a falta do pagamento de fracções subsequentes determina a cessação automática do contrato a partir da data do vencimento destas (art. 59.º e 61.º). Bem se vê a potencialidade deste regime para a causação de consequências sociais da maior gravidade no contexto de crise económica em que presentemente entramos. Basta que um sujeito falte ao pagamento de uma prestação do prémio para imediatamente ver caducar o contrato, perdendo protecção seguradora.
Nos termos do referido Comunicado, o novo regime transitório «vem flexibilizar o regime de pagamento do prémio de seguro, convertendo-o num regime de imperatividade relativa, ou seja, admitindo que seja convencionado entre as partes um regime mais favorável ao tomador do seguro. Na falta de convenção, e perante a falta de pagamento do prémio ou fração na respetiva data do vencimento, a cobertura dos seguros obrigatórios é mantida na sua integralidade por um período limitado de tempo, mantendo-se a obrigação de pagamento do prémio pelo segurado».
Ou seja, na prática, a única medida efectiva parece ser em relação aos seguros obrigatórios, em que se determina a manutenção da cobertura e cobrança dos prémios a posteriori. No que toca aos seguros facultativos, tudo o que se passa a permitir é temporariamente, que seja acordado um regime diverso do regime geral draconiano – o que não só é afastar de modo meramente temporário uma imperatividade absoluta que não tem, em geral, razão de ser, como é fazer a implantação de regimes menos drásticos depender da boa vontade do segurador.
8. As últimas palavras devem ser dedicadas a uma tentativa de prever as mudanças que a presente conjuntura acarretará, de futuro, no mercado segurador. Claro está que, perante um contexto de alteração da organização social e económica tão profundo como o que hoje se vive, qualquer exercício de previsão comporta muita incerteza. Mais ainda, quando está em causa um contrato que é especialmente sensível a dados de contexto, já que organiza a protecção contra aqueles que sejam, em cada momento, os riscos reconhecidos como relevantes.
Ora, é típico dos processos de tomada de decisão que o aumento da consciência em relação a certo risco que tenha causado danos no passado recente leve a um aumento da respectiva procura. Pode, por isso, supor-se, no médio/longo prazo, um aumento do interesse por seguros ligados a riscos de interrupção de cadeias logísticas (sobretudo seguros de lucros cessantes não ligados a danos em coisas), embora tal dependa do modo como a produção se reorganize à escala global. Nos sistemas em que a prestação de cuidados de saúde seja intermediada por seguros ou planos de saúde, será de esperar um aumento ou reforço de coberturas obrigatórias. E, em termos gerais, com o salto na direcção da digitalização que foi agora dado, será de esperar um aumento tanto dos ciberriscos, ligados a ataque informático ou mera falha técnica, como da consciência destes riscos e procura de cobertura para eles.
Deve, por outro lado, supor-se que haverá procura de coberturas que cubram especificamente riscos de pandemia (vg., nos seguros relativos à realização de grandes eventos adiados para 2021, os segurados quererão provavelmente que o risco de cancelamento/ adiamento/ maiores custos em razão de pandemia). Porém, os riscos ligados a situação de pandemia serão em geral riscos catastróficos, ou seja, com aptidão a afectar toda a carteira do segurador e, sobretudo do ressegurador (no caso de pandemias, nem sequer a dispersão geográfica do risco é viável). Como tal, esta cobertura só surgirá no mercado se houver modos de dispersar o risco para lá da mutualidade de segurados ou ressegurados, de um modo paralelo ao que se foi desenvolvendo para catástrofes naturais.
Nesta sede, o mercado de instrumentos financeiros derivados poderá ter um papel importante a desempenhar.