A união de facto em Portugal.

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Autora: Sandra Passinhas, Professora de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Correo electrónico: sandrap@fd.uc.pt

Resumen: Este texto pretende oferecer uma visão geral sobre a união de facto em Portugal, começando por concretizar a figura da coabitação de duas pessoas em condições análogas às dos cônjuges e por identificar quais são os requisitos para que aquela possa produzir efeitos. Assumindo que a união de facto é uma manifestação do direito do indivíduo, constitucionalmente protegido, ao desenvolvimento da sua personalidade, apreciar-se-ão os efeitos conferidos pela ordem jurídica, bem como a legitimidade da intervenção do legislador e a medida dessa intervenção, sobretudo no âmbito da casa de morada de família.

Palabras clave: união de facto, casa de morada, protecção constitucional da união de facto

Abstract: This article offers a general overview of cohabitation in Portugal. It analyses the legal definition of cohabitation and the requirements of its legal effects. The author claims that cohabitation should be regulated according to the right of individuals to choose the way to live their own life, that is constitutionally protected in Portugal. Furthermore, it questions about the intervention of the legislator, mainly if it not excessive in the field of family home protection.

Key words: cohabitation, family home, constitutional protection of cohabitation

Sumario:
I. Introdução.
II. A protecção constitucional da união de facto.
III. Efeitos da união de facto.
IV. O caso especial da protecção da casa de morada.
1. Em caso de ruptura.
2. Em caso de falecimento de um dos cônjuges.
V. Considerações finais.

Referencia: Actualidad Jurídica Iberoamericana Nº 11, agosto 2019, ISSN: 2386-4567, pp. 78-109.

Revista indexada en SCOPUS, REDIB, ANVUR, LATINDEX, CIRC y MIAR; e incluida en los siguientes catálogos: Dialnet, RODERIC, Red de Bibliotecas Universitarias (REBIUN), Ulrich’s y Dulcinea.

I. INTRODUÇÃO.

A união de facto em Portugal encontra o seu regime, principalmente, na Lei n.º 7/2001, de Maio. Este diploma define a união de facto como a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos. Assim, a vivência em condições análogas às dos cônjuges implica a comunhão de leito, mesa e habitação (tori, mensae et habitationis) e pressupõe ainda a unidade ou exclusividade. Contudo, a produção de efeitos da união de facto depende, no âmbito da alçada deste diploma, de a união de facto ter uma duração superior a dois anos. Noutras regulamentações específicas, o prazo pode variar: o prazo de um ano basta para assegurar a transmissão do arrendamento por morte do unido, enquanto que, na Lei da Nacionalidade, a duração necessária para que um estrangeiro possa declarar querer adquirir a nacionalidade portuguesa com fundamento na união de facto é de três anos.

São susceptíveis de impedir a produção de efeitos da união de facto, isto é, impedem a atribuição de direitos ou benefícios, em vida ou por morte aos unidos, os factos indicados no n.º 2, do artigo 2.º, nomeadamente, a idade inferior a 18 anos à data do reconhecimento da união de facto, a demência notória, mesmo com intervalos lúcidos e situação de acompanhamento de maior, se assim se estabelecer na sentença que a haja decretado, salvo se posteriores ao início da união; o casamento não dissolvido, salvo se tiver sido decretada a separação de pessoas e bens; o parentesco na linha recta ou no 2.º grau da linha colateral ou afinidade na linha recta, a condenação anterior de uma das pessoas como autor ou cúmplice por homicídio doloso ainda que não consumado contra o cônjuge do outro. Estes últimos factos impeditivos seguem os impedimentos matrimoniais dirimentes.

Na medida em que em Portugal a união de facto não está sujeita a qualquer formalidade (não está sujeita a inscrição no registo, rectius, não é um facto susceptível de inscrição no registo civil), é particularmente relevante a questão da prova da existência de uma situação de facto análoga à dos cônjuges. Assim, na reforma de 2010, o legislador determinou que, na falta de disposição legal ou regulamentar que exija prova documental específica, a união de facto prova-se por qualquer meio legalmente admissível. Uma das formas de provar a união de facto é através de declaração emitida pela Junta de Freguesia competente; neste caso, o documento deve ser acompanhado de declaração de ambos os membros da união de facto, sob compromisso de honra, de que vivem em união de facto há mais de dois anos, e de certidões de cópia integral do registo de nascimento de cada um deles. O que se disse vale, mutatis mutandis para o caso de a união de facto se ter dissolvido por vontade de um ou de ambos os membros, devendo a declaração sob compromisso de honra mencionar quando cessou a união de facto; se um dos membros da união dissolvida não se dispuser a subscrever a declaração conjunta da existência pretérita da união de facto, o interessado deve apresentar declaração singular. No caso de morte de um dos membros da união de facto, a declaração emitida pela junta de freguesia atesta que o interessado residia há mais de dois anos com o falecido, à data do falecimento, e deve ser acompanhada de declaração do interessado, sob compromisso de honra, de que vivia em união de facto com o falecido há mais de dois anos, à mesma data, de certidão de cópia integral do registo de nascimento do interessado e de certidão do óbito do falecido.

II. A PROTECÇÃO CONSTITUCIONAL DA UNIÃO DE FACTO.

A união de facto não vem elencada na lista das relações familiares constante do artigo 1676.º do Código Civil português, onde constam o casamento, a filiação, a afinidade e a adopção. Na medida em que os unidos de facto vivem como se fossem casados – apenas com a diferença de que não o são, pois não estão ligados pelo vínculo formal do casamento – a união de facto é, consideramos, uma relação parafamiliar, equiparada pelo nosso legislador ao casamento para determinados efeitos, no âmbito do seu poder de conformação. A questão da medida dessa equiparação, e até que ponto ela se deve aproximar do casamento, tem sido controversa e motivou várias vezes a intervenção do Tribunal Constitucional.

O artigo 36.º da Constituição da República Portuguesa, enquadrado sistematicamente no capítulo dedicado aos direitos, liberdades e garantias pessoais, reconhece e garante direitos individuais dos cidadãos, na área familiar: o direito a constituir família e a casar (n.os 1 e 2), os direitos dos cônjuges, no âmbito familiar e extrafamiliar (n.º 3), os direitos dos pais em relação aos filhos (n.os 5 e 6) e os direitos dos filhos (n.os 4, 5, 2.ª parte, e 6).

Não é incontroverso o significado da expressão “o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade”, que consta do n.º 1. O debate tem girado, sobretudo, em torno da questão de saber se o artigo 36.º CRP, na parte em que consagra “o direito de constituir família”, tutela constitucionalmente a união de facto. Em sentido positivo pronunciaram-se GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, para quem o conceito constitucional de família não abrange apenas a “família matrimonializada”, havendo assim uma abertura constitucional – se não mesmo uma obrigação – para conferir o devido relevo às uniões familiares “de facto”. Em sentido diverso, PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA defenderam que, quando o n.º 1 do artigo 36.º estabelece que todos têm direito de constituir família e de contrair casamento, a expressão “direito a constituir família” refere-se à matéria da filiação: o direito a constituir família é, em primeiro lugar, um direito a procriar, e, em segundo lugar, um direito a estabelecer as correspondentes relações de maternidade e paternidade. Quanto ao facto de no n.º 2 se estabelecer que a lei regula “os requisitos e os efeitos do casamento e da sua dissolução, por morte ou divórcio, independentemente da forma de celebração” – e de alguns autores pretenderem reconduzir a união de facto a um casamento sem forma, ou com forma diversa de celebração -, ensinam-nos os mesmos autores que não se pode reconduzir a união de facto a uma dimensão ou vertente negativa do direito de contrair casamento. A dimensão ou vertente negativa do direito de contrair casamento, sublinhe-se, é o direito de não casar (mais amplo do que viver em união de facto, pois pode ainda significar ficar em solidão, relacionar-se esporadicamente ou pontualmente ou até viver em promiscuidade).

Para estes autores, cuja posição adoptamos, o princípio da protecção da união de facto decorre do direito ao desenvolvimento da personalidade, que a revisão constitucional de 1997 reconheceu de modo explícito no n.º 1 do artigo 26.º. Considerando o direito ao desenvolvimento da personalidade como o direito do indivíduo a afirmar livremente a sua identidade – com as suas diferenças e a sua autonomia, sem estar vinculado a modelos externamente impostos, conferindo-lhe o seu direito a viver a sua vida, do modo que escolher, desde que daí não resultem prejuízos para terceiros -, estabelecer uma união de facto é certamente uma manifestação ou forma de exercício desse direito. Se o direito ao desenvolvimento da personalidade tutela o substracto da individualidade, segundo a decisão própria e autónoma de cada um, abrange também a tutela da liberdade geral de acção da pessoa humana, reconhecendo a cada indivíduo um espaço legítimo de liberdade e realização pessoal liberto de intervenção jurídica. A legislação que proibisse a união de facto, que a penalizasse, impondo sanções aos membros da relação e coarctando de modo intolerável o direito de as pessoas viverem em união de facto, seria, pois, manifestamente inconstitucional.

É pacífico, mesmo para quem entenda que o artigo 36.º da CRP inclui a união de facto no seu âmbito normativo, que a sua protecção constitucional não exige, todavia, que o legislador dê à união de facto efeitos idênticos aos que atribui ao casamento, equiparando as duas situações. Nem se diga que o diferente tratamento do casamento e da união de facto viola o princípio da igualdade (artigo 13.º CRP), pois este princípio apenas proíbe discriminações arbitrárias ou desprovidas de fundamento ou de justificação racional. Ora, o casamento e a união de facto são situações materialmente diferentes: os casados assumem o compromisso de vida em comum; os membros da união de facto não assumem, não querem ou não podem assumir esse compromisso. Nas palavras de DIOGO LEITE DE CAMPOS, “entre o casamento e a união de facto há extremas marcadas que impedem que se fale de analogia jurídica”. O desfavor ou desprotecção dos unidos de facto relativamente aos cônjuges é assim objectivamente fundado, e este entendimento é também perfilhado pelo Tribunal Constitucional, que já decidiu que: “na óptica do princípio da igualdade, a situação de duas pessoas que declaram a intenção de conceder relevância jurídica à sua união e a submeter a um determinado regime (um específico vínculo jurídico, com direitos e deveres e um processo especial de dissolução) não tem de ser equiparada à de quem, intencionalmente, opta por o não fazer” .

Forçoso é também reconhecer que uma legislação que equiparasse totalmente a união de facto ao casamento seria inconstitucional, fosse qual fosse a via por que essa equiparação se fizesse, na medida em que retiraria aos particulares a possibilidade de partilharem uma vida em comum sem estarem ligados pelos laços apertados do casamento. Do mero facto de coabitarem, com mais ou menos requisitos, resultaria uma submissão a efeitos que claramente extrapolariam da vontade dos conviventes. A decisão de casar é uma opção constitucionalmente protegida, mas a decisão de não casar também o é. Entre as fronteira da penalização da união de facto e da sua equiparação ao casamento, disse-nos PEREIRA COELHO, “vale o princípio democrático, que permite ao legislador ordinário conformar livremente o regime da união de facto, de acordo com a opção mais progressista ou conservadora da política familiar adoptada”.

Não sendo a união de facto uma forma de contrair casamento, mas implicando um projecto de vida totalmente diverso, que deve ser respeitado e valorado pelo legislador e, portanto, não cabendo no âmbito de protecção “do direito a casar e a constituir família” do artigo 36.º da CRP, sublinhe-se, todavia, que, no nosso entendimento, o casal nascido da união de facto juridicamente protegida também é família, para efeitos da protecção institucional conferida pelo artigo 67.º da CRP. Note-se, em favor desta nossa posição, o modo como o legislador, em cumprimento do disposto no artigo 67.º, n.º 2, da CRP, conformou a posição dos unidos de facto, no sentido de lhes conceder protecção da casa de morada de família, de os beneficiar com o regime jurídico aplicável a pessoas casadas em matéria de férias, feriados, faltas, licenças, de preferência na colocação dos trabalhadores da Administração Pública; com a aplicação do regime do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, concedendo-lhes protecção social na eventualidade de morte do beneficiário, por aplicação do regime geral ou de regimes especiais de segurança social, bem como prestações por morte resultante de acidente de trabalho ou doença profissional, a pensão de preço de sangue e por serviços excepcionais e relevantes prestados ao País, ou a inclusão do unido de facto no elenco dos titulares do direito à indemnização por danos não patrimoniais por morte da vítima, no n.º 3 do artigo 496.º. São expressões da valoração pelo legislador ordinário da fundamentalidade reconhecida a esta forma de organização da vida familiar.

Na verdade, a vinculação jurídico-material do legislador à Constituição e, em especial, à protecção da família como instituição, não é de modo a eliminar a sua liberdade de conformação legislativa, cabendo-lhe, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente, bem como definir o regime concreto a que essas relações ficarão sujeitas.

III. EFEITOS DA UNIÃO DE FACTO.

No que aos efeitos da união de facto diz respeito, as conclusões a retirar do que dissemos no ponto anterior são claras: união de facto e casamento não produzem os mesmos efeitos. Em termos pessoais, os unidos não estão vinculados pelos deveres conjugais, não estabelecem relações de afinidade com os parentes do outro, nem podem alterar o seu nome de modo a acomodar os apelidos do outro. Em termos patrimoniais, a união de facto não permite a aplicação de um regime de bens, nem das regras que disciplinam as relações patrimoniais dos cônjuges independentemente do regime de bens, como a administração de bens e regime da responsabilidade por dívidas. Neste âmbito, aplicar-se-á, pois, entre os unidos o regime geral das relações obrigacionais e reais.

Mas o artigo 3.º da Lei 7/2001 garante uma série de efeitos à união de facto, a que acrescem disposições dispersas noutro diplomas. Vejamos. Nele encontramos consagrado o direito de as pessoas que vivem em união de facto a beneficiarem do regime jurídico aplicável a pessoas casadas em matéria de férias, feriados, faltas, licenças e de preferência na colocação dos trabalhadores da Administração Pública, ou a beneficiarem de regime jurídico equiparado ao aplicável a pessoas casadas vinculadas por contrato de trabalho, em matéria de férias, feriados, faltas e licenças; o direito à aplicação do regime do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares nas mesmas condições aplicáveis aos sujeitos passivos casados e não separados de pessoas e bens; o direito à protecção social na eventualidade de morte do beneficiário, por aplicação do regime geral ou de regimes especiais de segurança social, a prestações por morte resultante de acidente de trabalho ou doença profissional, por aplicação dos regimes jurídicos respectivos, e a pensão de preço de sangue e por serviços excepcionais e relevantes prestados ao país. O artigo 6.º esclarece que o membro sobrevivo da união de facto beneficia daqueles direitos, independentemente da necessidade de alimentos. A entidade responsável pelo pagamento das prestações, quando entenda que existem fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto, pode solicitar meios de prova complementares, designadamente declaração emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira ou pelo Instituto dos Registos e do Notariado, I. P., onde se ateste que à data da morte os membros da união de facto tinham domicílio fiscal comum há mais de dois anos. Quando, na sequência destas diligências, subsistam dúvidas, a entidade responsável pelo pagamento das prestações deve promover a competente ação judicial com vista à sua comprovação.

Fora do âmbito da Lei n.º 7/2001, encontramos importantes medidas de protecção noutros diplomas. O artigo 2020.º do CC prevê a possibilidade de o membro sobrevivo da união de facto exigir alimentos da herança do falecido. Este direito caduca se não for exercido nos dois anos subsequentes à data da morte do autor da sucessão e cessa, nos termos do artigo 2019.º, se o alimentado contrair novo casamento, iniciar união de facto ou se tornar indigno do benefício pelo seu comportamento moral. O artigo 496.º, n.º 2, também do CC, sobre os danos não patrimoniais, por morte da vítima, determina que o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem. O n.º 3, aditado pela Lei n.º 23/2010, de 30 de agosto, veio definir que se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes.

Para além da já referida possibilidade de o estrangeiro, unido de facto há mais de três anos com um português, declarar a pretensão de aquisição da nacionalidade portuguesa, a união de facto produz outros efeitos pessoais. Assim, o artigo 7.º da Lei n.º 7/2001, reconhece a todas as pessoas que vivam em união de facto o direito de adoção em condições análogas às previstas no artigo 1979.º do Código Civil, sem prejuízo das disposições legais respeitantes à adoção por pessoas não casadas. Do mesmo modo, nos termos do artigo 6.º da Lei n.º 32/2016, de 26 de Julho, podem recorrer às técnicas de procriação medicamente assistida os casais de sexo diferente ou os casais de mulheres, respetivamente casados ou casadas ou que vivam em condições análogas às dos cônjuges, bem como todas as mulheres independentemente do estado civil e da respetiva orientação sexual.

Nos termos do artigo 46.º, n.º 2, da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, considera-se que constituem uma família, para efeitos de medidas de acolhimento familiar, duas pessoas casadas entre si ou que vivam uma com a outra há mais de dois anos em união de facto ou parentes que vivam em comunhão de mesa e habitação. E no Código de Processo Civil, o artigo 497.º, 2, alínea d), considera que se pode recusar legitimamente a depor quem conviver, ou tiver convivido, em união de facto em condições análogas às dos cônjuges com alguma das partes na causa.

No que diz respeito aos filhos dos unidos de facto, nas acções de investigação da paternidade, presume-se a paternidade quando, durante o período legal de concepção, tenha existido comunhão duradoura de vida em condições análogas às dos cônjuges ou concubinato duradouro entre a mãe e o pretenso pai. Já quanto ao exercício das responsabilidades parentais, o artigo 1911.º, n.º 1, manda aplicar ao exercício das responsabilidades parentais os artigos 1901.º a 1904.º, isto é, o regime a vigorar na constância do casamento, quando a filiação se encontre estabelecida relativamente a ambos os progenitores e estes vivam em condições análogas às dos cônjuges. Em caso de dissociação familiar, o artigo 1911.º, n.º 2, determina aplicáveis as disposições dos artigos 1905.º a 1908.º, relativas ao divórcio, separação de pessoas e bens ou declaração de nulidade ou anulação do casamento. O legislador cumpriu integralmente o princípio constitucionalmente consagrado no artigo 36.º, 4, da CRP, que proíbe a discriminação entre filhos nascidos dentro e fora do casamento.

Note-se, por último, que a extinção da união de facto não confere aos unidos qualquer específico direito a indemnização, nem há lugar a uma pretensa separação de meações.

Cessando a união de facto, cada um dos sujeitos da relação tem direito a participar na liquidação do património adquirido pelo esforço comum que, entende a nossa jurisprudência, pode ser feita de acordo com as normas disciplinadoras da dissolução e liquidação das sociedades civis. Outra via será a de o convivente em união de facto, que se considere empobrecido relativamente aos bens em cuja aquisição participou, pedir que o outro convivente seja condenado a reembolsá-lo, com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa, nos termos dos artigos 473.º, 474º e 479, n.º 1 do Código Civil. Note-se, contudo, que o enriquecimento sem causa pode encontrar dificuldades várias. Como bem decidiu o Acórdão do STJ, de 20 de Março de 2014: “isto porque se considera que houve então uma causa justificativa para tais atribuições patrimoniais impeditiva da conclusão de que o prestado foi indevido; essa causa justificativa reside, precisamente, na subsistência da união de facto, para a qual cada um dos membros contribuiu em termos materiais pela forma tacitamente acordada pelo casal enquanto a relação se manteve”. No mesmo sentido, mais recentemente, o Acórdão do STJ, de 24 de Outubro de 2017: “Não decorrendo da união de facto quaisquer obrigações decorrentes de um dever de assistência entre o casal assim formado há que entender que tudo o que possa ser prestado por ambos, mesmo a nível de trabalho doméstico terá de ser entendido como uma obrigação natural, de coercitividade e repetição impossíveis, atenta a natureza da relação instituída (…)”.

IV. O CASO ESPECIAL DA PROTECÇÃO DA CASA DE MORADA.

Uma questão nuclear na protecção da união de facto é aquela que se prende com o destino da casa de morada em caso da extinção da união de facto. Nos termos do artigo 8.º, 1, da Lei n.º 7/2001, a união de facto dissolve-se com o falecimento de um dos membros, por vontade de um dos seus membros e com o casamento de um dos membros. É àquele particular regime que vamos agora dedicar a nossa atenção, analisando separadamente os preceitos aplicáveis em caso de ruptura e em caso de morte.

1. Em caso de ruptura.

O artigo 4.º da Lei 7/2001 determina que, em caso de ruptura, se aplica o disposto nos artigos 1105.º e 1793.º do Código Civil, com as necessárias adaptações. O artigo 1105.º, aplicável à situação em que a casa é arrendada, determina que, incidindo o arrendamento sobre casa de morada de família, o seu destino será, em caso ruptura, decidido por acordo dos unidos, podendo estes optar pela transmissão ou pela concentração a favor de um deles. Na falta de acordo, cabe ao tribunal decidir, tendo em conta a necessidade de cada um, os interesses dos filhos e outros factores relevantes. A transferência ou a concentração acordadas e homologadas pelo juiz ou pelo conservador do registo civil ou a decisão judicial a elas relativa são notificadas oficiosamente ao senhorio.

Já o artigo 1793.º do Código Civil refere-se aos casos em que a casa é comum ou própria do outro cônjuge. Determina o n.º 1 deste preceito que: “Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal”. Nos termos do n.º 2, aquele arrendamento fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem. Parece-nos incontroverso que do artigo 1793.º resulta uma restrição do direito de propriedade, garantida, prima facie, no artigo 62.º da CRP, entendida como norma jusfundamental permissiva do livre uso, aproveitamento e fruição dos bens; a imposição de um arrendamento forçado impõe, indubitavelmente, ao proprietário uma limitação na sua titularidade, uma interferência com a sua potestas uti domini que, indiscutivelmente, cabe no âmbito de protecção do artigo 62.º. É certo que o direito de propriedade não é um direito absoluto, mas antes um direito a ser moldado pelo legislador, “nos termos da constituição”. O legislador, todavia, não é livre de conferir qualquer conteúdo à norma restritiva do direito; antes é necessário que esta norma restritiva tenha, na perspectiva global da Constituição, um sentido que seja conforme com o quadro valorativo estabelecido. As intervenções de cunho restritivo, nos termos do artigo 18.º, n.º 2 e 3, não devem exceder o necessário para salvaguarda de outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos, nem afectar o conteúdo essencial dos preceitos constitucionais que os tutelam. Já defendemos que a atribuição da casa de morada de família a ex-cônjuge, quando não haja filhos, ou quando os filhos não fiquem a residir na casa, é uma restrição ao direito de propriedade que não nos parece constitucionalmente justificada por outros “direitos ou interesses legalmente protegidos”.

Como dissemos, o artigo 4.º da Lei n.º 7/2001 manda aplicar o artigo 1793.º às situações de ruptura da união de facto, ou seja, veio estabelecer o mesmo tratamento legal dos ex-unidos e dos ex-cônjuges no que à atribuição da casa de família diz respeito. A aplicação à união de facto dos artigos 1793.º CC e 1005.º CC corresponde a anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional. O acórdão TC n.º 359/91 declarou a inconstitucionalidade do Assento do STJ de 23 de Abril de 1987, segundo o qual as normas dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 1110.º do CC – que prescreviam que, em caso de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens, o direito ao arrendamento da casa de morada de família podia ser atribuído, por acordo dos cônjuges ou ex-cônjuges, ou, na falta deste, por decisão judicial, ao cônjuge ou ex-cônjuge não arrendatário – não eram aplicáveis às uniões de facto, mesmo que destas houvesse filhos menores. O Tribunal desenvolveu a sua argumentação em torno do artigo 36.º, n.º 4, da Constituição e aplicou o princípio da não discriminação entre filhos nascidos dentro e fora do casamento. Nas palavras do Acórdão: “a regra sobre a atribuição da casa de morada de família contém diversos princípios informadores dos quais, em última análise, no plano da respectiva aplicação, vai depender o sentido da própria regra. Ora, um desses conteúdos normativos de que pode depender a transferência do arrendamento, consubstancia-se num princípio da protecção do interesse dos filhos menores. E, desde que se entenda, que o interesse dos filhos apenas vale no caso dos filhos nascidos do casamento e não já relativamente aos filhos cujos pais viviam em união de facto, parece seguro que, no plano específico deste segmento normativo, então erigido em critério decisivo de atribuição do arrendamento se verifica um manifesto tratamento discriminatório relativamente aos filhos cujos pais viviam em união de facto”. Em consequência, o Tribunal decidiu: “considerar inconstitucional o Assento de 23 de Abril de 1987, pois que, por força dele, consente-se um tratamento diferenciado entre filhos menores, consoante sejam nascidos dentro ou fora do casamento, impondo-se a estes últimos um regime de manifesto desfavor relativamente àqueles, tudo em aberta contravenção com o disposto no artigo 36.º, n.º 4, da Constituição”.

Pouco tempo depois, o Acórdão TC n.º 1221/96 julgou inconstitucional, por violação do disposto no n.º 4 do artigo 36.º da Constituição da República, a norma do artigo 1793.º na interpretação segundo a qual o regime nela previsto não é aplicável às situações de cessação da união de facto, se constituída esta more uxorio, havendo filhos nascidos dessa união. O Tribunal considerou de manter a linha jurisprudencial seguida pelo Acórdão TC n.º 359/91, pois: “é evidente a correlação entre as situações contempladas nos nºs. 2 e 3 do artigo 1110º e no nº 1 do artigo 1793º: visam aquelas, além do mais, a destinação da casa de morada da família quando os cônjuges vivam em casa arrendada; cuida a última da destinação da casa de morada da família pertença em comum ou própria de um dos cônjuges”, sublinhando que “num caso e noutro, o interesse dos filhos do casal é erigido como critério de ponderação: nesta perspectiva torna-se evidente a similitude entre a situação decorrente da atribuição da casa de morada da família estabelecida em imóvel pertencente a um dos membros do casal e a casa de morada da família constituída em prédio arrendado por um dos membros desse casal”.

A Lei n.º 7/2001, porém, como já antes dela a Lei n.º 135/99, não só confirmaram a jurisprudência de extensão dos efeitos da ruptura do casamento à união de facto, como a ampliaram, admitindo que as mencionadas disposições legais se apliquem à união de facto mesmo que desta não haja filhos menores. A união de facto enquanto relação parafamiliar goza da protecção institucional do artigo 67.º, cabendo ao legislador a conformação concreta da medida dessa protecção, que será sempre de acordo com a fundamentalidade que lhe seja reconhecida. A abertura constitucional a uma tutela directa das uniões de facto não significa que, por força do princípio da igualdade, deva haver um mesmo tratamento legal para pessoas que vivem em união de facto, mas a diferença, e a medida dessa diferença, cabem ao legislador determinar. Nas palavras do Acórdão TC n.º 651/09, tendo como pano de fundo as uniões de facto heterossexuais, a família que, nos termos do artigo 67.º da Constituição merece a protecção do Estado, “não é só aquela que se funda no matrimónio; é também aquela outra que pressupõe uma comunidade auto-regulada de afectos, vivida estável e duradouramente à margem da pluralidade de direitos e deveres que, nos termos da lei civil, unem os cônjuges por força da celebração do casamento”.

Todavia, se o ex-cônjuge, após o divórcio, não cabe no âmbito de protecção do artigo 67.º da CRP, a fortiori, tal entendimento deve ser defendido para o ex-unido de facto, ainda com mais intensidade: os unidos no âmbito da sua autodeterminação pessoal, decidiram assentar a sua relação numa união de facto, rejeitando o vínculo formal do casamento e o estatuto que o legislador lhe associa. A Constituição marca os limites do legislador que se constitui neste sentido, como intérprete, e ao mesmo tempo, instaura os critérios formais e materiais que podem ser seguidos pelo operador jurídico como intérprete, tanto na Constituição como desde a Constituição. Ainda que o conceito de família que a Constituição acolhe como “elemento fundamental da sociedade” seja um conceito aberto e plural, adaptável às necessidades e realidades sociais, não nos parece que aí se possa incluir o ex-unido de facto.

Se a situação das pessoas unidas pelo matrimónio não é idêntica à partida àquela em que se encontram as pessoas que vivam em união de facto, também não o deverá ser após a ruptura. Retomando as palavras do Acórdão TC n.º 57/95: “Havendo liberdade de contrair casamento (artigo 36.º, n.º 1, da Constituição), não seria razoável impor às pessoas que, consciente e voluntariamente, não quiseram unir-se matrimonialmente, o regime jurídico pensado para as famílias fundadas no casamento, que até elas poderão achar inconveniente”. Reiteramos, pois, o nosso juízo de que a atribuição da casa de morada de família a um ex-unido, quando não haja filhos, ou quando os filhos não fiquem a residir na casa, é uma restrição ao direito de propriedade do seu titular não constitucionalmente justificada por outros direitos ou interesses legalmente protegidos.

2. Em caso de falecimento de um dos unidos.

Nos termos do artigo 1106.º CC, o arrendamento para habitação não caduca por morte do arrendatário quando lhe sobreviva pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de um ano. A transmissão da posição de arrendatário depende de, à data da morte do arrendatário, o transmissário residir no locado há mais de um ano e, havendo várias pessoas com direito à transmissão, a posição do arrendatário transmite-se, em igualdade de circunstâncias, sucessivamente para o cônjuge sobrevivo ou pessoa que com o falecido vivesse em união de facto, para o parente ou afim mais próximo ou, de entre estes, para o mais velho ou para a mais velha de entre as restantes pessoas que com ele residissem em economia comum. O direito à transmissão previsto nos números anteriores não se verifica se, à data da morte do arrendatário, o titular desse direito tiver outra casa, própria ou arrendada, na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou no respectivo concelho quanto ao resto do País.

Não é unânime a qualificação da natureza da transmissão do arrendamento por morte, previsto, quer no artigo 1106.º do CC, quer no artigo 57.º da Lei n.º 6/2006. INOCÊNCIO GALVÃO TELLES considera a atribuição do direito de arrendamento de uma casa para habitação um legado legítimo, e JORGE DUARTE PINHEIRO qualifica-o mesmo como um legado legitimário. Pelo contrário, OLIVEIRA ASCENSÃO, LUIS CARVALHO FERNANDES e RITA LOBO XAVIER partilham da posição contrária, pois a transmissão do arrendamento, dando-se embora por morte do arrendatário, segue um regime que se distancia em muito do regime sucessório.

Também nós somos da opinião de que o artigo 1106.º do CC e o artigo 57.º da Lei 6/2006 não configuram um legado legítimo. O argumento decisivo para a nossa tomada de posição prende-se com o facto de, nestas situações, o legislador, ao prever a transmissão do arrendamento por morte do arrendatário, não estar a afectar – em substituição do de cuius – um bem determinado do património daquele, bem de que o de cuius pudesse ele próprio dispor.

Na hipótese de a casa de morada ser própria do unido falecido ou compropriedade dos unidos, o artigo 5.º da Lei 7/2011, na redação que lhe foi dada pela Lei 23/2010, confere hoje protecção ao unido de facto sobrevivo, quer relativamente à casa de morada, quer ao respectivo recheio. Aí se estabelece, para proteger mais eficazmente a continuidade do lar que viveu em união de facto, que, em caso de morte do membro da união de facto proprietário da casa de morada da família e do respectivo recheio, o membro sobrevivo pode permanecer na casa, pelo prazo de cinco anos, como titular de um direito real de habitação e de um direito de uso do recheio, ou, no caso de a união de facto ter começado há mais de cinco anos antes da morte, aqueles direitos são conferidos por tempo igual ao da duração da união. Se os membros da união de facto eram comproprietários da casa de morada da família e do respectivo recheio, o sobrevivo tem o direito de uso exclusivo da casa e do recheio. A formulação legal não é a mais correcta. Nos termos do n.º 3 do artigo 5.º, “se os membros da união de facto eram comproprietários da casa de morada de família e do respectivo recheio, o sobrevivo tem os direitos previstos nos números anteriores, em exclusivo”. A leitura correcta do artigo 5.º, n.º 3, será, todavia, aquela que, partindo da qualidade do unido sobrevivo como comproprietário da casa e do recheio, entende a norma como vindo estabelecer e alargar os poderes do unido sobre a casa e sobre o recheio ainda enquanto faculdades compreendidas no seu direito de (com)propriedade. Nos termos do artigo 1406.º, n.º 1, CC, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se da coisa comum, “contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destine e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito”. É aqui que o legislador vem intervir, determinando que, ainda que mero comproprietário da casa e do recheio, os poderes ou faculdade do unido sobrevivo se estendem agora à totalidade da coisa. Mas, ressalvamos, afastamos a interpretação de que o legislador veio alargar os poderes do unido comproprietário sobre a sua quota-parte a todo o objecto, sob pena de se vir a permitir que este viesse a realizar sobre a coisa actos de fruição – que não cabem no âmbito dos poderes conferidos pelos direitos de uso e habitação – como, por exemplo, um arrendamento de parte da casa, sem necessidade do assentimento requerido pelo artigo 1424.º, n.º 2, CC. O que o legislador quis dizer – parece-nos ser esta a leitura mais adequada – foi que os poderes de uso que cabiam ao unido sobrevivo pela sua compropriedade são, agora, exercidos sobre todo o objecto, afastando, pois, a aplicação do artigo 1406.º CC.

Esgotado o prazo em que beneficiou do direito de habitação, o membro sobrevivo tem o direito de permanecer no imóvel na qualidade de arrendatário, nas condições gerais do mercado, e tem direito a permanecer no local até à celebração do respectivo contrato, salvo se os proprietários satisfizerem os requisitos legalmente estabelecidos para a denúncia do contrato de arrendamento para habitação, pelos senhorios, com as devidas adaptações. Na falta de acordo sobre as condições do contrato, o tribunal pode fixá-las, ouvidos os interessados. O membro sobrevivo tem, ainda, direito de preferência em caso de alienação do imóvel, durante o tempo em que o habitar a qualquer título.

Já o artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 135/99, estabelecia que em caso de morte do membro da união de facto proprietário da casa de morada do casal, o membro sobrevivo tinha um direito real de habitação sobre a mesma pelo prazo de cinco anos e direito de preferência na sua venda ou arrendamento. O disposto nesta norma, nos termos do n.º 2, podia ser afastado por disposição testamentária em contrário, e não se aplicava se ao falecido sobrevivessem descendentes ou ascendentes que com ele vivessem há pelo menos um ano e pretendessem continuar a habitar a casa. A Lei n.º 7/2001 veio introduzir algumas alterações a este quadro legal. Manteve o direito real de habitação do membro sobrevivo, pelo prazo de cinco anos, mas este direito continuava a poder ser afastado por disposição testamentária em contrário e não se aplicava quando ao falecido sobrevivessem descendentes com menos de um ano de idade ou que com ele convivessem há mais de um ano e pretendessem habitar a casa, excluindo, pois, a tutela dos ascendentes. O direito de habitação conferido ao unido era considerado um direito “de fraca protecção”, na expressão de PEREIRA COELHO e GUILHERME OLIVEIRA, e apontava-se, como deficiência do regime, sobretudo, o facto de o unido sobrevivo não ter direito ao uso do recheio da casa (e que se encontrava previsto em atribuição preferencial ao cônjuge na partilha sucessória no artigo 2103.º-A CC).

O artigo 5.º da Lei n.º 7/2001 e a protecção concedida ao unido sobrevivo suscitam-nos, ainda, a montante, algumas interrogações sobre o seu regime e natureza, e a jusante, dúvidas sérias sobre a sua constitucionalidade. Comecemos pelas primeiras.

Em primeiro lugar, podemos questionar-nos sobre a constituição, pelo período mínimo de cinco anos, de um direito real de habitação, em caso de morte do membro da união de facto proprietário da casa de morada da família, ou do direito de uso exclusivo, se os membros da união de facto eram comproprietários, sem outros requisitos especiais nem outras excepções além das estabelecidas no artigo 5.º, n.º 5 e 6. Haverá repercussões no direito de uso e habitação se o unido de facto, durante o prazo de duração desses direitos, iniciar uma outra união de facto ou contrair matrimónio? De uma análise literal do regime legal, não resultam dúvidas da resposta negativa à questão colocada. Relembremos que o direito de uso “consiste na faculdade de se servir de certa coisa alheia e haver os respectivos frutos, na medida das necessidades, quer do titular, quer da família”. E o artigo 1487.º do Código Civil determina que no conceito de família se compreendem o cônjuge, não separado judicialmente de pessoas e bens, os filhos solteiros, outros parentes a quem sejam devidos alimentos e as pessoas que, convivendo com o respectivo titular, se encontrem ao seu serviço ou ao serviço das pessoas designadas. Já no caso de o unido proprietário ter o uso exclusivo, os seus poderes são os do proprietário pleno.

A doutrina, todavia, tem dado uma resposta diferente à questão de saber se o unido sobrevivo mantém o seu direito enquanto morador usuário, no caso de iniciar uma nova união ou de contrair matrimonio. NUNO GOMES DA SILVA, ao analisar a questão a propósito da protecção do cônjuge sobrevivo, chamou à colação a doutrina italiana que relativamente a esta questão defende que por força do novo matrimónio, o originário ambiente familiar não pode e de certo modo já não deve representar um valor ético e sentimental. O autor acaba por defender a aplicação do abuso de direito: “pode dizer-se que o fim da concessão do direito ao cônjuge sobrevivo é a manutenção do quadro de vida, do ambiente que existia à data da cessação da sociedade conjugal. Mais do que uma intenção meramente patrimonial, esta atribuição tem um fim ético-sentimental. Sendo assim, poderá afirmar-se que, certamente, a intromissão de um novo cônjuge vai contrariar a finalidade legal de protecção do cônjuge sobrevivo. A lei quer proteger o cônjuge sobrevivo, enquanto tal, e não quando passa a bínubo”. Mais recentemente, também FRANÇA PITÃO veio defender “uma limitação do conceito”, afastando a possibilidade de o novo unido ou um cônjuge posterior vir a habitar a casa de morada.

Refere o autor que não foi certamente este tipo de situações que o legislador pretendeu proteger ao estender o âmbito de aplicabilidade do direito de habitação ao cônjuge sobrevivo. Nas palavras do autor: “Parece-nos ter de proceder-se a uma interpretação limitativa da sua aplicação, por forma a abranger no âmbito da família, para os efeitos em análise, apenas as pessoas que se encontram enumeradas no artigo 1487.º à data da morte do companheiro sobrevivo, à excepção feita na parte final do referido preceito, ou seja, quanto às pessoas que estejam ao serviço do titular do direito ou das restantes pessoas ali enumeradas.

A importância da casa como espaço de vida, fornecendo o contexto mais apropriado para o recato e desenvolvimento da família e da vida familiar ao proporcionar um sentimento de pertença, enraizamento e continuidade. Assim sendo, pensamos ser a melhor doutrina aquela que considera que quando a casa deixa de funcionar para o unido sobrevivo como a continuação do seu ambiente familiar – porque esse ambiente agora mudou, em função da nova relação afectiva -, ou quando ela já não representa a continuação do quadro de vida existente ao tempo da união de facto, o direito atribuído pelo artigo 5.º da Lei n.º 7/2001, deve extinguir-se.

Quanto à natureza deste direito, e para melhor aferirmos a sua adequada qualificação, relembremos que a sucessão hereditária vem definida no artigo 2024.º como o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam. O conceito de sucessão é definido como a modificação meramente subjectiva numa relação jurídica. São as pessoas que se movem: o novo sujeito sub-entra na situação jurídica do anterior, mantendo-se idêntica essa mesma situação. Esta definição é apoiada pelo significado etimológico de sucessão. Com efeito, esta palavra vem do latim successio, que, por sua vez, deriva do verbo succedere (sub+cedere), o qual significa “vir debaixo”, “entrar debaixo”, “penetrar, “entrar”. Entrado o vocábulo na linguagem jurídica, manteve ele, fundamentalmente, a sua significação etimológica: entrar, substituir, ocupar a posição do antecessor, suportando os encargos, os riscos e os deveres”.

Como nos ensinou INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, o legado é uma atribuição singular que pode concretizar-se em diversas modalidades: (i) o legatário recebe um direito que preexistia como tal no património do de cuius; (ii) recebe um direito novo formado à custa de preexistente direito do de cuius; (iii) o benefício do legatário está em se libertar de um débito; (iv) o legatário adquire um puro direito creditório constituído originariamente, tornando-se credor da herança ou de terceiro onerado (algum ou alguns dos herdeiros ou outros legatários).

O direito de habitação da casa e de uso do recheio consagrado no artigo 5.º da Lei n.º 7/2002, quando a casa era propriedade do unido falecido, ou o direito de uso exclusivo a favor do unido sobrevivo quando a casa era compropriedade dos dois, têm a natureza de legado ex lege? Parece-nos que a resposta não pode deixar de ser positiva. Estamos perante bens propriedade do unido falecido (a habitação e o recheio, num caso, a quota, no outro), ou seja, bens que compõem a sua massa hereditária e de que ele poderia ter disposto em vida, não fora o caso de uma específica provisão legal o ter vindo, imperativamente, a proibir. Mas esta imposição legal surge como uma limitação ou restrição à transmissão de um direito existente e actual na esfera jurídica do de cuius. A atribuição do direito de uso e habitação não se afasta do esquema sucessório: o morador usuário entra na titularidade de um direito que fazia parte da esfera jurídica do de cuius, sub-entra, na medida do seu direito real limitado, no gozo dos bens em substituição do de cuius. O unido comproprietário sub-entra no direito de uso exclusivo, ou seja, no uso da quota que pertencia ao unido falecido, e que pertence agora à sua massa hereditária. O interesse do legitimário é satisfeito através da limitação da liberdade de disposição do de cuius. Esta sucessão é imperativa, não pode ser afastada pelo de cuius, tem lugar mesmo contra a sua vontade. Como escreveu GUILHERME DE OLIVEIRA: “A lei nova considera que a protecção da casa de morada é o núcleo irredutível da protecção conferida ao membro sobrevivo da união de facto e, portanto, garante a protecção mesmo contra a vontade do falecido”.

A imposição ex lege de um legado legitimário (a favor do unido sobrevivo) ao unido de facto falecido consubstancia uma restrição do seu direito de propriedade sobre o imóvel habitacional, sobre o seu recheio ou sobre a sua quota. Uma das dimensões protectivas do direito de propriedade tal como consagrado no artigo 62.º da CRP é, precisamente, o direito à transmissão da propriedade inter vivos ou mortis causa, entendida esta no sentido restrito de não se ser impedido de a transmitir, e não no sentido de uma liberdade geral de transmissão, que pode ser mais ou menos profundamente limitada pelo legislador infraconstitucional, nomeadamente, quanto à transmissão mortis causa.

A sucessão legitimária, seja a devolução sucessória aos herdeiros, seja aos legatários, como é o caso do membro sobrevivo da união de facto, representa sempre uma limitação do direito de propriedade, enquanto compressão dos poderes de livre disposição do seu titular. São, todavia, restrições que se justificam pela protecção do núcleo de familiares que, pressupõe-se, partilhavam entre si um conjunto de recursos e desenvolviam um espírito de entreajuda. À liberdade de acção do de cuius, na determinação autónoma sobre a disposição dos seus bens, sobrepõe-se a tutela da família nuclear, elencada pelo legislador no artigo 2057.º do CC: cônjuge, descendentes e ascendentes.

Que dizer, pois, desta extensão da sucessão legitimária aos unidos de facto, pela constituição imperativa de um direito de habitação e de uso do recheio da casa de morada, ou pelo direito de uso exclusivo, no caso de a casa pertencer em compropriedade a ambos os membros da união de facto? A nossa análise desenvolver-se-á em dois momentos metódicos: começaremos por uma análise estrutural da solução oferecida pelo legislador e faremos, de seguida, uma análise quanto aos efeitos.

Estruturalmente, se procurarmos enquadrar a tutela conferida ao unido sobrevivo por referência ao cônjuge sobrevivo, verificamos que o legislador procurou adoptar para a união de facto, quanto ao uso da casa de morada e do recheio uma solução “análoga” àquela prevista nos artigos 2103.º-A a C do CC, relativa às atribuições preferenciais na partilha. Todavia, há dissemelhanças em aspectos fundamentais que cumpre realçar. Em primeiro lugar, o cônjuge é herdeiro do de cuius, o que não acontece com o unido de facto.

Ao cônjuge herdeiro é-lhe concedida uma atribuição preferencial por conta da sua meação no património conjugal e da sua quota hereditária. Ao unido é-lhe concedido um benefício, um direito de uso e de habitação constituído ex novo, um direito real de gozo que onera e restringe o direito de propriedade dos sucessores. Ao contrário do cônjuge que pode ver ser-lhe imposta, judicialmente, a pedido dos proprietários, a prestação de caução, o unido sobrevivo não está sujeito a este ónus.

Se as diferenças são significativas ao nível estrutural, ao nível dos efeitos a solução é ainda mais gravosa. Exemplifiquemos: António, viúvo, a viver com o filho Filipe, inicia uma união de facto com Beatriz, que passa a viver com eles. António e Beatriz nunca casaram porque, assumidamente e de comum acordo, quiserem excluir qualquer comunicação patrimonial entre ambos. Se António morrer, Beatriz fica titular de um direito de habitação sobre a casa e de um direito de uso sobre o recheio. E no âmbito dos seus poderes, pode expulsar Filipe da casa onde moravam. Um outro caso: Pedro, solteiro, vive em união de facto com Rita, numa casa de que ambos são proprietários. O filho de Pedro, Júlio, vem viver com eles após a morte da sua mãe. Se Pedro morrer, Rita fica com a faculdade de usar, exclusivamente, a casa e, no âmbito dos seus poderes, pode colocar Júlio fora de casa.

A solução seria diferente para os dois casos se o unido de facto tivesse sido qualificado como herdeiro pelo legislador ordinário. Quer o unido quer o descendente, enquanto co-herdeiros, poderiam habitar a casa, nos termos do artigo 1406.º, n.º 1, CC. A solução legal é, pois, perversa. É que, tal como o legislador conformou o regime legal, teria sido preferível para o de cuius (e para os seus herdeiros) que o legislador tivesse consagrado o unido de facto como herdeiro. Significa isto que para o de cuius, em termos de disposição patrimonial, e de tutela dos seus descendentes, teria sido preferível casar. Ou seja, no que à afectação post mortem do seu património diz respeito, é prejudicado por ter exercido o seu direito a não casar. A vivência em união de facto desprotegeu, inevitavelmente, a sua família. Quer os seus descendentes, quer outros familiares que vivessem na casa, como um ascendente ou um sobrinho, ainda que instituídos herdeiros, sempre se veriam postergados do direito de habitação pelo prazo mínimo de cinco anos. Na prática, neste quadro que apresentamos, a protecção do unido sobrevivo é superior àquela concedida ao cônjuge, o que representa uma inversão de intensidade de protecção por referência à fundamentalidade de cada uma destas relações no quadro constitucional.

Relembremos que a união de facto se funda no direito ao livre desenvolvimento da personalidade. O sujeito, na sua autoconformação vivencial, não quis assumir com o unido uma relação como o casamento, um estatuto próprio de direitos e deveres. Pelo contrário, podemos legitimamente aceitar que não querer que o unido seja herdeiro seja o único motivo para não casar. Pense-se no caso, cada vez mais corrente, de duas pessoas idosas, ambas viúvas ou divorciadas e com filhos dos anteriores casamentos, que querem viver juntas, numa velhice acompanhada, mas que não querem comunicações patrimoniais, nem em vida, nem por morte, de modo a não afectarem a expectativa sucessória dos seus herdeiros, relativamente ao património que construíram com os anteriores cônjuges e progenitores respectivamente.

O legislador, ao obnubilar a vontade do unido, está a restringir não só o seu direito de propriedade – na vertente de transmissão mortis causa, porque lhe impõe um legado legitimário, que ele não pode afastar – mas também a sua autonomia privada. A união de facto cabe na tutela constitucional da instituição familiar do artigo 67.º, embora o seu fundamento enquanto direito subjectivo não se encontre no artigo 36.º (direito a constituir família), mas no artigo 26.º como uma concretização do direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Relembremos, nas palavras de SOUSA RIBEIRO, que a autodeterminação “como direito ao ‘livre desenvolvimento da personalidade’ é indissociável do tratamento como igual daquele que faz opções e adopta formas de vida divergentes dos padrões dominantes. Digna de igual reconhecimento e respeito é a pessoa como ser único e diferenciado, portadora de necessidades, aspirações, desejos e atributos que a individualizam na circunstância histórica do seu viver”.

O legislador tem um amplo poder de conformação das relações jurídicas familiares, e pode em cada momento interpretar, modificar, suspender ou revogar a lei anterior, mas a sua liberdade está limitada pelos outros valores e princípios constitucionais recolhidos na Constituição, nomeadamente pelo princípio da igualdade. É nossa convicção que, ao consagrar para o unido de facto uma protecção mais forte do que aquela prevista para o cônjuge sobrevivo, o legislador não cumpriu com o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição. Se o princípio da igualdade é um princípio de conteúdo pluridimensional, postula as exigências de obrigar a um tratamento igual das situações de facto iguais e a um tratamento desigual das situações de facto desiguais, proibindo, inversamente, o tratamento desigual das situações iguais e o tratamento igual das situações desiguais. Numa fórmula curta, a obrigação da igualdade de tratamento exige que “aquilo que é igual seja tratado igualmente, de acordo com o critério da sua igualdade, e aquilo que é desigual seja tratado desigualmente, segundo o critério da sua desigualdade”. É neste sentido que o legislador ordinário está vinculado no âmbito da sua conformação legislativa. Nas palavras de JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS: toda a lei ordinária deve obedecer ao princípio da igualdade, “tanto nas suas precipitações imediatas de igualação e diferenciação como no seu conteúdo geral”.

O legislador nacional, ao estabelecer para os unidos de facto sobrevivos um regime de protecção de casa de morada estruturalmente semelhante àquele definido para o casamento, tratou de forma igual o que é substancialmente desigual e violou o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP. Casamento e união de facto são realidades vivenciais distintas; equipará-las após a morte, à custa da autonomia e do património do unido falecido, é um artifício que não se coaduna com a ordem de valores estabelecida pela nossa Constituição.

O legislador equiparou o que é, de facto, diferente. Mas fê-lo com um fundamento razoável? Podemos nós dizer que a igualdade de tratamento no caso concreto tem justificação e fundamento material bastante? É certo que apontámos acima que a união de facto, bem como o casamento, cabem no âmbito de protecção do artigo 67.º da CRP. Mas o regime a definir pelo legislador sempre terá de considerar a fundamentalidade de cada uma destas relações. A submissão ao estatuto formal do casamento – que implica a sujeição dos cônjuges a um conjunto de direitos e deveres, ao estabelecimento de relações familiares com o cônjuge e os seus parentes, a um regime patrimonial do casamento, com o seu regime de bens, com o regime específico de administração dos bens e da responsabilidade por dívidas, à solidariedade pós-conjugal resultante da obrigação de alimentos, etc.- que está ausente da união de facto, por esta ser a expressão da liberdade autodeterminada dos unidos, quer aquando do estabelecimento da relação, quer durante o tempo em que esta durou, impede que se considere como materialmente fundada não só a igualação da protecção conferida ao unido de facto com aquela de que beneficia o cônjuge, mas, e sobretudo, a atribuição de uma posição ao unido de facto que, na prática, se vem a revelar como mais vantajosa do que aquela de que ele mesmo beneficiaria se fosse cônjuge.

Estamos perante violações por excesso de protecção, quando o Estado conceda a certa categoria de pessoas ou de situações uma protecção descabida, desproporcionada em face dos interesses constitucionalmente protegidos e que se traduza em verdadeiro privilégio em relação a outra ou outras categorias. Trata-se de um fenómeno aparentemente próximo da discriminação positiva, com a diferença de que esta é justificada, funda-se em fins assumidos pela Constituição e almeja alcançar uma igualdade de facto das pessoas (artigo 9.º, alínea d)), ao passo que o excesso de protecção, pelo contrário, agrava as desigualdades de direito e de facto e revela-se incoerente no plano global do sistema.. No caso de excesso, justifica-se falar em desproporcionalidade positiva; no caso de défice de protecção em desproporcionalidade negativa. A questão do controlo da actividade legislativa face à assunção de uma concepção material conduz inevitavelmente a um padrão de controlo da observância do princípio da igualdade em que o julgador é inevitavelmente remetido para juízos de valoração que incidem sobre os fundamentos ou os critérios que pretendem justificar, em caso de igualdade de tratamento, a equiparação produzida. Ora, desse ponto de vista, tendo sobretudo em conta o amplo espaço de conformação que deve ser reconhecido ao legislador democrático, a resposta mais comum vai no sentido de uma autocontenção judicial que, todavia, conhece várias gradações, que vão de uma visão minimalista do papel do juiz neste domínio – o juiz só pode invalidar as diferenciações arbitrárias, aquelas para as quais o legislador não pode apresentar qualquer fundamentação ou, pelo menos, qualquer fundamentação compatível com os critérios constitucionais e onde não haja um mínimo de coerência entre os objectivos prosseguidos e os resultados previsíveis ou verificados. Na verdade, a protecção do unido sobrevivo relativamente à casa de morada é uma política legislativa de bondade indiscutível. Mas, na aplicação em concreto do artigo 5.º, da Lei n.º 7/2001, em que os tribunais sejam chamados a decidir, deverão fazer uma concretização da norma de acordo com a Constituição – em particular, com o respeito pelo princípio da igualdade, que proíbe a igualação de situações de facto distintas entre si, tendo em consideração a liberdade de transmissão do de cuius, bem como o seu direito ao livre desenvolvimento da personalidade. A solução a chegar passará, então, pela análise da vontade hipotética ou concreta do de cuius relativamente àquela situação específica. Nos casos em que o unido de facto exclui da habitação, propriedade do falecido ou compropriedade de ambos, pessoas que com eles viviam, em manifesto desacordo com o que seria a vontade do de cuius, cabe averiguar da aplicabilidade ao caso concreto de institutos do direito privado como o abuso do direito ou os bons costumes.

V. CONSIDERAÇÕES FINAIS.

O objecto de investigação deste texto foi o regime da união de facto em Portugal. Em jeito de conclusão, cabe reiterar que o fundamento da protecção da união de facto é o direito, constitucionalmente protegido, de cada indivíduo ao livre desenvolvimento da sua personalidade. Este direito permite a cada um desenvolver a sua vida afectiva sem ter de se sujeitar a modelos matrimoniais pré-determinados e a regulação operada pelo legislador terá, pois, de respeitar a vontade dos unidos em não se submeterem a um estatuto matrimonial rígido, como é o do casamento. É nestes limites que a Lei n.º 7/2001, bem como outras disposições legislativas, atribuíram certos direitos e benefícios aos unidos de facto. O legislador português terá, todavia ido um pouco mais longe na protecção da casa de morada, em caso de extinção da relação por ruptura (em que restringe o direito de propriedade do unido sem um fundamento constitucionalmente admissível) ou por morte (na medida em que adoptou um regime que pode, em concreto, proteger mais o unido do que o cônjuge sobrevivo), convocando, pois, a necessária contenção judicial na aplicação destas normas.

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