Autora: Flaviana Rampazzo Soares, Mestre e Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS). Especialista em Direito Processual Civil. Advogada e Professora. Correo electrónico: frampazzo@hotmail.com.
1. A expressão “uso off-label de medicamentos” é usualmente aplicada no setor da saúde, em especial na literatura especializada, sendo entendida como o emprego de um medicamento homologado por órgão regulatório de vigilância sanitária, fora das suas indicações técnicas específicas.
O uso “off-label” abrange variações que incluem a indicação terapêutica diversa; a posologia distinta; a administração para faixa etária não indicada na bula, etc. A principal vantagem dessa prática é a possibilidade de descoberta de novos usos para medicamentos já experimentados, cujos principais efeitos colaterais são conhecidos e descritos na literatura farmacológica, enquanto que o principal risco é o de que não apenas o fármaco deixe de atender a uma expectativa de eficácia (não há benefício), como cause efeito adverso ao desejado, prejudicando o paciente que dele fez uso (há malefício).
O uso “off-label” de medicamentos não é prática incomum, sendo conhecido o exemplo da administração da aspirina (ácido acetilsalicílico), que é um remédio para dores leves e moderadas, na profilaxia de doença coronariana em pacientes diabéticos. Inibidores da receptação de serotonina (v.gr., fluoxetina) são medicamentos prescritos para ejaculação precoce. E, diante das restrições na realização de pesquisas e testes em grupos vulneráveis (idosos, crianças e gestantes), o emprego “off-label” de medicamentos tem ampla atuação nesses espaços, como o uso de broncodilatadores inalatórios ou de anticonvulsivantes por pacientes pediátricos.
Este texto tem como foco um dos possíveis usos “off-label”, que é a administração, em situação de emergência, de medicamento com indicação terapêutica distinta daquela para a qual fora aprovado, e os possíveis requisitos cuja observância seja necessária para que a conduta médica possa ser considerada juridicamente admissível.
2. A necessidade dessa análise se acentua diante da pandemia do coronavírus, que chegou figurativamente como um “tsunami”, afligindo o mundo e causando grandes estragos à saúde e à economia. Veem-se os profissionais da área da saúde diante de uma grande incógnita, pois há pacientes que sucumbem ao serem contagiados, sem que se saiba efetivamente o que fazer nesse cenário, e de situações que demandam difíceis decisões, pois não há estrutura de saúde suficiente e apta para atender a todos de forma adequada.
A busca de respostas e de restabelecimento faz com que profissionais da saúde intentem descobrir uma saída, a partir do que está ao alcance destes, fazendo com que o uso de medicamento “off-label” seja uma tentativa de descobrir uma solução ou um auxílio, porque a inclusão de um novo medicamento no mercado costuma ser cara, complexa e demorada.
Todavia, isso não significa que o médico tenha uma “carta branca” para fazer uso indiscriminado ou disseminado de qualquer medicamento, transformando indevidamente o paciente em “objeto de pesquisa”.
Assim, torna-se conveniente sugerir alguns parâmetros mínimos para, por um lado, permitir que essa ferramenta possa ser utilizada como alternativa emergencial para a pandemia da COVID 19, sem que possa ser imputada ao médico a prática de um ato ilícito (pois, nesse momento, ainda não houve tempo para a realização de pesquisas com resultados efetivos, desenvolvimento de produtos eficazes e de ensaios clínicos prévios necessários para a indicação segura de um tratamento) e, por outro, assegurar que o enfermo seja beneficiado ou não prejudicado indevidamente com o uso dessa técnica, a qual não pode ser utilizada de forma desmedida, sob pena de ofender-lhe na sua dignidade.
No Brasil, essa técnica é aplicada, e não há proibição de uso de fármaco “off-label”, embora também não exista uma autorização legal explícita. Há inúmeras ações judiciais que tratam desse tema, não sob o contexto da responsabilidade médica na prescrição medicamentosa, mas, sim, na determinação de custeio e oferecimento do tratamento “off-label” indicado pelo médico, por parte das operadoras de planos de saúde.
Sob o aspecto da responsabilidade civil, pode-se afirmar que, no Brasil, os danos experimentados pelo paciente em razão da administração medicamentosa “off-label”, não podem ser imputados ao laboratório fabricante. Essa pretensão dirigir-se-á ao médico, ao hospital ou ao plano de saúde, conforme as circunstâncias concretamente consideradas. E, no tocante a relação entre médico e paciente, essa administração não é proibida, desde que, não haja outra opção com melhor eficácia ao caso específico; que os efeitos colaterais conhecidos não sejam qualitativa ou quantitativamente graves, etc., como será visto.
A responsabilidade médica no direito brasileiro, mesmo em contexto de pandemia, permanece sendo subjetiva (imputação subjetiva de responsabilidade). O que muda, em cenário de crise decorrente da pandemia, é o menor rigor na análise da correção ou incorreção da conduta profissional na execução do ato médico.
Difere pouco, em linhas gerais, da solução adotada nos EUA (conquanto as bases sejam distintas). No mencionado país, a “National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research” debateu se o uso de um medicamento pode ser classificado como uma “prática médica” ou uma “ferramenta de pesquisa”. Para essa Comissão, o objetivo da prática médica é o de oferecer diagnóstico, tratamento preventivo ou terapia, enquanto que a pesquisa almeja testar uma hipótese a partir de um problema e dela extrair conclusões (veja-se que a metodologia está presente na sua finalidade). Na primeira, há a solução para a atuação concreta, e na segunda a finalidade é a de contribuir para o conhecimento generalizável.
Assim, a prescrição “off-label” não seria enquadrada na segunda opção, embora, a rigor, seja admissível no âmbito da primeira, conquanto fora do padrão prescrito pelo órgão regulador específico, no modelo utilizado para a sua autorização.
3. Não há precedente judicial, nos EUA, que tenha estabelecido ao médico um dever de divulgar, em um procedimento de escolha esclarecida do paciente, que o uso de um medicamento prescrito é “off-label”. Um precedente que se aproxima do tema é o Canterbury v. Spence (1972), o qual analisou a pretensão indenizatória de um paciente contra um médico, por ter sido submetido a uma cirurgia que lhe causou a paralisia na metade inferior do corpo (situação possível para 1% dos casos submetidos a esse procedimento), sem ter sido previamente informado desse risco.
A Corte de Apelação referiu nesse precedente que um consentimento é inútil sem a correspondente informação prévia, e um “paciente mediano tem pouca ou nenhuma compreensão das artes médicas e, normalmente, tem apenas seu médico a quem pode buscar esclarecimento para chegar a uma decisão inteligente”, surgindo “a necessidade e, por sua vez, a exigência, de uma informação razoável do médico ao paciente, para tornar possível tal decisão”, assim considerada aquela na qual uma pessoa razoável, ao decidir, provavelmente atribuiria significado ao risco ou conjunto de riscos existentes.
Em Klein v. Biscup (Ohio, 1996) especificou-se que o uso “off-label” de dispositivos médicos era uma questão de julgamento de conveniência que compete ao próprio médico, o qual, no entanto, pode estar sujeito à responsabilidade profissional por negligência envolvendo esse uso, mas não será responsabilizado unicamente por deixar de divulgar previamente ao paciente que o uso ocorre nessa modalidade.
Tudo o que acima foi referido indica um caminho em termos genéricos e, em razão dos limites deste texto, superficiais. Demanda-se, necessária e subsequentemente, uma divisão de duas situações quanto ao uso “off-label” de medicamentos: naquelas ordinárias da vida comum, nas quais é possível afirmar que o dever de cuidado do médico é mais acentuado; e nas atípicas e extraordinárias de uma epidemia com graves repercussões na saúde dos seres humanos, que demanda do médico decisões rápidas e sem a possibilidade de reflexões aprofundadas e validadas cientificamente.
Na situação de crise, como a ocasionada pela pandemia da COVID-19, não é possível exigir do médico que use medicamentos prescritos precisamente para essa doença, enquanto esses não existirem. Por outro lado, nesse caso, deve ser considerado admissível que o médico prescreva o uso específico aos pacientes sob os seus cuidados, de medicamentos existentes e aprovados pelos órgãos regulatórios, necessariamente “off-label”. Essa conduta será lícita se praticada de boa-fé, em dosagem adequada e com a segurança admissível em uma situação atípica como essa pandemia. Por isso, pode-se dizer que antivirais podem ser considerados como alternativas de possível uso, assim como medicamentos utilizados no tratamento das manifestações decorrentes da contaminação pela COVID-19, como, por exemplo, antibióticos.
Lembre-se que os médicos (e os profissionais da área da saúde, em geral) que atuam na “linha de frente” do atendimento aos doentes de COVID-19, estão sob situação não apenas de pressão, mas, igualmente, de risco à própria saúde, ao realizar um trabalho com exposição biológica, em benefício da coletividade. Trata-se de um trabalho altruísta, ainda que remunerado, a atrair o que os estadunidenses denominam de “Good Samaritan Laws”, que é uma proteção dirigida a quem pratica trabalhos de assistência em saúde nas situações de emergência, e que tem a coragem tanto de assistir, quanto de decidir, o que exige iniciativa e destemor. Assim, é justo que a análise da sua atuação (padrão de conduta admissível) não tenha o rigor que há no julgamento de uma conduta médica em situações ditas “normais” de atendimento.
4. Admitindo-se que não seria desejável uma regulamentação rígida a respeito da matéria, diante da diversidade de circunstâncias que permeiam cada situação concreta, bem como das dificuldades de avaliação no que diz respeito ao que possa ser considerado como aceitável em uma situação tão dramática e peculiar, é possível estabelecer algumas pautas que permitem uma melhor apreciação quanto às condições nas quais a prescrição e administração medicamentosa “off-label” pode ser admitida, sem que haja responsabilidade médica, tendo em vista os aspectos abaixo pontuados, conquanto seja possível verificar da leitura que muitos casos são vinculados entre si, embora não sejam necessariamente concomitantes ou cumulativos:
1) a existência de evidência qualificada de possibilidade de eficácia razoável (com possibilidade de respaldo científico) para o uso “off-label” de um medicamento, seja quanto à doença em si (o ataque ao vírus) seja quanto às suas manifestações no organismo humano (uma pneumonia causada pelo vírus, por exemplo);
2) a existência de algum indicativo técnico no sentido de que esse uso possa ser vantajoso ao paciente;
3) a inocorrência de imperícia ou negligência grosseira na prescrição “off-label”;
4) que a indicação e o uso ocorram com a observância dos princípios da ética biomédica (que atendam a beneficência, não maleficência, autodeterminação e justiça) que possam ser identificados ao tempo da administração. O princípio da justiça da ética biomédica é pauta principiológica para evitar situações discriminatórias, impedindo que pessoas tenham atendimento diferenciado injustificável, que sejam prejudicadas ou unicamente por fundamentos não admissíveis juridicamente;
5) que essa prática seja executada sem a violação das normas técnicas (inclusive protocolos) emitidas pelos órgãos regulamentadores;
6) que ocorra na situação de inexistência de alternativas de tratamento viáveis ou menos arriscados;
7) que a prática não traga prejuízos qualitativamente ou quantitativamente graves ao paciente, maiores que o não uso “off-label” da medicação;
8) que a prescrição seja específica para o paciente individualmente considerado e que seja mantido o monitoramento, a permitir que o seu uso cesse tão logo seja constatada alguma adversidade ou ineficácia.
Toda situação de prescrição e administração de medicamento “off-label” para auxiliar no diagnóstico, na prevenção, na mitigação de danos, no tratamento ou na cura de paciente, em razão de emergência de saúde, que ocorra de acordo com as circunstâncias acima apontadas, não deve ensejar responsabilidade médica.
Na averiguação da conduta médica, os parcos recursos disponíveis (tanto de infraestrutura, quanto de materiais de uso e pessoal de apoio) constituem elemento que atenua a severidade da análise da conduta exigível do médico. Ademais, deve-se perquirir se outro médico em situação semelhante razoavelmente poderia adotar a mesma conduta. Se a resposta a esse questionamento por positiva, não há como responsabilizar o médico pelo ato praticado.
Mesmo diante de uma situação de pandemia, o hospital pode ter uma conduta de cautela e de prevenção quanto aos riscos de ser demandado, e, se houver condições, deve informar ao paciente (ou a autorização de quem o assista ou o represente), na baixa hospitalar quanto à possibilidade de uso de medicação “off-label”. No entanto, não se pode admitir uma ampliação desmedida do dever de informar ao paciente, a ponto de trazer mais prejuízos que benefício tanto ao atendimento particularmente considerado, quanto à própria complexidade do serviço de atendimento médico, ou mesmo de gerar um desvio indevido da atenção do paciente ou do médico quanto ao que precisa ser feito.
Há, dessa forma, a necessidade de obtenção de uma solução possível, que não negue os direitos do paciente; que atenda ao princípio da não maleficência e que, igualmente, não engesse de forma inadmissível o exercício da criatividade técnica, praticada com equilíbrio e seriedade, e a busca por respostas que um medicamento possa oferecer “off-label”.
5. Adicione-se a incidência do “postulado normativo aplicativo da proporcionalidade”, seja como proibição tanto do excesso quanto da insuficiência na avaliação da conduta médica.
Adequação e necessidade são vocábulos associados à proporcionalidade, de modo que é imprescindível perquirir se o meio empregado por quem ministrar medicação “off-label” permite razoavelmente o alcance do seu objetivo (se é adequado), sem que isso cause injustificável prejuízo à integridade psicofísica ao paciente, ou que lhe cause indevido gasto financeiro ou dano ao seu patrimônio para que se assegure a licitude dessa conduta profissional. Da mesma forma, há que se verificar se é necessário recorrer a esse meio, quanto ao estado de saúde desequilibrado de um paciente, que possa ser remediado sem acesso a essa modalidade (que corresponde ao critério da imprescindibilidade, pelo qual é preferível o uso de meio que possa atingir o mesmo fim que seja menos lesivo, ou seja, que não restrinja outro direito alheio ou que o atinja de forma menos lesiva). A primeira pergunta a fazer é quanto ao critério da “pertinência”, e a segunda é a das “alternativas” que possam existir.
Como visto, ao mesmo tempo em que se admite que é possível a prescrição “off-label” igualmente é necessário reconhecer que o caminho a trilhar é o de analisar as circunstâncias concretamente observáveis, incluindo as motivações tanto do uso quanto de eventual recusa do paciente ou de seu representante ou assistente; das necessidades e dos objetivos que fundam a prescrição “off-label”; da possibilidade de se obter o resultado previsto por outros meios, dentre outros, como foi visto acima.
Os exemplos e as variáveis possíveis são abundantes e não se resumem às hipóteses antes indicadas. De toda forma, convém que as linhas gerais a respeito do tema sejam estudadas e postas, para que se verifique quando o profissional, confrontado com uma situação na qual o atendimento demande uma atuação mais criativa e técnica, não age ilicitamente, na prescrição e administração medicamentosa “off-label”.
A transparência, a boa-fé e a organização são fundamentais para que se possa atingir o equilíbrio entre o necessário atendimento, a essencial técnica, as necessidades e os limites das estruturas de atendimento em saúde, com a finalidade de superar a pandemia da melhor maneira possível.