Prescrição médica “off-label” e Covid-19: uma reflexão ético-jurídica

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Autor: André Gonçalo Dias Pereira, Professor da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra; Investigador do Instituto Jurídico; Diretor do Centro de Direito Biomédico. Correo eletrónico: andregoncalodiaspereira@gmail.com

1. A Constituição da República Portuguesa consagra, no artigo 64.º, o direito à saúde, dispondo que “Todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover”. Este artigo insere-se no capítulo dos “Direitos, liberdades e garantias” e visa integrar valores tão palmares como os da dignidade humana, da equidade, da universalidade e da igualdade. O acesso ao medicamento, de qualidade, é um dos pilares importantes deste direito fundamental.

2. De entre os deveres dos médicos está o dever de respeitar as leges artis. No que tange à “prescrição de medicamentos”, o respeito pela AIM (autorização de introdução no mercado) e o RCM (resumo das características do medicamento) configuram o respeito pelas leges artis, em sentido rigoroso. Assim, o médico deve prescrever em conformidade com as indicações terapêuticas autorizadas pela Autoridade Nacional do Medicamento (INFARMED). Por seu turno, o Resumo das Características do Medicamento é a base da informação para os profissionais de saúde, indispensável a uma utilização segura e eficaz do medicamento, uma vez que o processo de aprovação de um medicamento para uso clínico obriga à prova inequívoca das suas eficácia e segurança, com base na análise dos resultados dos ensaios clínicos obrigatórios, nos quais assentará a determinação das suas indicações.

3. Em Portugal, o INFARMED é a entidade responsável pela Autorização de Introdução no Mercado nacional dos Medicamentos de Uso Humano. Esta instituição reguladora afasta expressamente a sua responsabilidade pela prescrição “off-label”. A Circular Informativa n.º 184/CD do Infarmed, de 12-11-2010 afirma:
“As indicações terapêuticas constantes nos Resumos das Características dos Medicamentos (RCM) foram objecto de apreciação e aprovação por parte destas entidades e reflectem os dados apresentados aquando do processo de avaliação do medicamento. Assim, reforça-se o seguinte:

(1) Não compete ao Infarmed pronunciar-se sobre a utilização dos medicamentos para uma indicação terapêutica diferente das que constam nos respectivos RCM.

(2) A utilização de um medicamento fora do âmbito das indicações terapêuticas aprovadas é da inteira responsabilidade do médico prescritor, que entende que um dado medicamento se adequa a uma dada indicação terapêutica, face ao caso particular de um seu doente.

(3) É competência das comissões de farmácia e terapêutica e/ou de ética, de cada instituição, pronunciarem-se sobre a correcção da terapêutica prescrita aos doentes.”.

4. Também a indústria farmacêutica beneficia de uma responsabilidade legal diminuída (ou mesmo excluída) em situações de utilização “off-label” de um seu medicamento. Ou seja, a indústria farmacêutica responde, tão-somente, por qualquer problema que possa resultar da utilização estrita do seu produto em indicações que hajam merecido a autorização das autoridades competentes e que, portanto, constem do respetivo RCM. Por outro lado, a indústria farmacêutica: (1) “responde por defeitos de informação” (defeito de informação para efeitos de responsabilidade civil objetiva por produtos defeituosos, nos termos do Decreto-Lei n.º 383/89, de 6 de novembro, que transpõe para o direito português a Diretiva n.º 85/374/CEE, em matéria de responsabilidade decorrente de produtos defeituosos) e (2) “não pode fazer qualquer tipo de publicidade a uma utilização “off-label” do seu medicamento”, independentemente da experiência e das evidências clínicas que sobre o mesmo existam. Ao invés, a indústria farmacêutica apenas pode promover um medicamento rigorosamente para a indicação aprovada, sendo estritamente ilegal sugerir ou promover direta ou indiretamente a sua utilização para outras indicações, noutras dosagens ou para outras populações de doentes. Para que possa juntar novas indicações às inicialmente aprovadas, a indústria farmacêutica está obrigada a promover os necessários ensaios clínicos.

5. Contudo, sendo esta a regra – a da prescrição de medicamentos em indicação com a competente aprovação – “a (boa) prática médica” impõe muitas vezes outras soluções. Na verdade, em face do caso e do doente em concreto e suportado pelas evidências clínicas exibidas por múltiplos medicamentos (sem indicação terapêutica aprovada para aquela patologia, naquela dosagem ou naquela população específicas, mas que no decurso do seu uso regular e rotineiro tenham evidenciado eficácia e segurança em casos similares), quando o médico entende, ainda assim, que a sua prescrição é adequada e desejável, estamos perante a denominada prescrição “off-label”. Tal prática é muito frequente em todas as áreas da medicina, mas em especial na pediatria, dada a escassez de ensaios clínicos com menores (crianças) e a consequente ausência de AIM de medicamentos nessa área.

6. A possibilidade da prescrição “off-label” resulta dos princípios de isenção e liberdade profissionais do médico e do princípio da liberdade de escolha dos meios de diagnóstico e tratamento (ambos consagrados no artigo 7.º do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, Regulamento de Deontologia Médica n.º 707/2016, de 21 de julho, Diário da República 2.ª Série).

“Artigo 7.º – Isenção e liberdade profissionais.

1. O médico só deve tomar decisões ditadas pela ciência e pela sua consciência.

2. O médico tem liberdade de escolha de meios de diagnóstico e terapêutica, devendo, porém, abster -se de prescrever desnecessariamente exames ou tratamentos onerosos ou de realizar atos médicos supérfluos.”

7. Por outro lado, segundo o artigo 10.º do Regulamento de Deontologia Médica (Regulamento 797/2016, de 21 de julho), o médico deve abster-se de quaisquer atos que não estejam de acordo com as leges artis. Porém, a mesma norma prevê duas exceções. Em primeiro lugar, aceita-se a prática de “atos não reconhecidos pelas leges artis, mas sobre os quais se disponha de dados promissores, “em situações em que não haja alternativa”, desde que com consentimento do doente ou do seu representante legal, no caso daquele o não poder fazer.” Segundo, excetuam-se ainda “os atos que se integram em protocolos de investigação, cumpridas as regras que condicionam a experimentação em e com pessoas humanas.”

Podemos assim considerar que há uma escala de intervenções, nem sempre linear, desde a prática dos atos standard, passando pelas inovações terapêuticas, até à experimentação humana.
Às inovações terapêuticas “aplicam-se alguns dos princípios que regem o direito da experimentação com seres humanos, designadamente um reforço do controlo procedimental e institucional”,

i) um “acentuado dever de informação”, por respeito ao princípio da autonomia, que mantém toda a sua vigência num período de exceção, mesmo em casos em que não há medicação autorizada para um vírus novo e, caso o paciente já esteja incapaz de consentir, seja assegurada a autorização;

ii) o respeito pelo “princípio da beneficência”, a implicar que o médico só deve propor uma inovação terapêutica, se perante o quadro clínico que tem em mãos, não dispuser de um método seguro e eficaz já devidamente consagrado,

iii) após uma “ponderação risco-benefício e”

iv) a “decisão deve ser partilhada”, ou seja, tomada em “reunião da equipa de especialistas”;

v) em nome do princípio da transparência, deve a prescrição e sua fundamentação ser “registada no processo clínico”.

8. Com efeito, o “princípio da precaução” nos avanços terapêuticos tem relevo metodológico, na medida em que uma intervenção que se desvie dos “standards”, designadamente a utilização “off-label” de medicamentos, no âmbito das inovações terapêuticas e da experimentação humana deve ser devidamente fundamentada e deve carecer de um controle procedimental justo, emergindo um paradigma “procedimentalista”.

9. A utilização “off-label”de medicamentos tem vindo a ser uma necessidade para tentar curar a COVID-19. Doença respiratória causada por um Corona vírus para a qual ainda não há medicação autorizada. Em Portugal, a Direção Geral de Saúde deu indicações para que quatro fármacos possam ser usados pelos médicos para ajudar os casos mais graves. Trata-se de um usado para o ébola (remdesivir), um antiretroviral para o VIH (lopinavir/ritonavir) e dois utilizados na malária e artrite reumatoide (cloroquina e hidroxicloroquina). Os doentes internados em enfermarias que tenham insuficiência respiratória ou evidências de pneumonia podem ser tratados com hidroxicloroquina ou cloroquina e o fármaco do VIH. Já os doentes em unidades de cuidados intensivos têm indicação para poder usar o fármaco contra o ébola: um usado para o ébola (remdesivir), um antiretroviral para o VIH (lopinavir/ritonavir) e dois utilizados na malária e artrite reumatoide (cloroquina e hidroxicloroquina).

10. Conclusão.

A prescrição “off-label” de medicamentos para tentar a cura ou debelar o sofrimento das pessoas infectadas pelo COVID-19 é lícita, numa visão ampla das leges artis do médico, e eticamente legítima, pois faz face aos princípios da beneficência, da não maleficência e desde que se respeite a autonomia do doente.

Resumindo, os pressupostos da utilização “off-label” de medicamentos são:

(1) um “consentimento informado reforçado”,

(2) uma justificada “análise risco-benefício” da sua utilização no paciente concreto,

(3) com referência a estudos que permitam uma cabal “fundamentação científica”.

(4) o médico deve “registar”, pelo menos no caso de intervenções com riscos ou consequências secundárias mais graves, um esboço dessa fundamentação no processo clínico do doente;

(5) a decisão de recurso a “prescrição off-label” resulte de uma decisão partilhada, primeiro, em “equipa médica”, segundo, com o “próprio doente”;

(6) só em casos extremos se poderá lançar mão do “consentimento presumido”.

(7) Só se poderá legitimar a inovação terapêutica após uma cuidadosa “ponderação custo-benefício” e

(8) em caso algum se pode privar o doente de tratamento fundamental.

11. Dada a extrema gravidade da infeção com o Covid-19, em alguns casos, e a novidade da doença, em alguns casos estaremos já na fronteira com os “ensaios clínicos de medicamentos”. Assim, em alguns casos de maior inovação terapêutica, poder-se-ia justificar a aplicação de um procedimento mais exigente, designadamente, o exigido para a experimentação em seres humanos. Assim, deveriam considerar-se o respeito pelas exigências constantes do art. 16.º Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina (em grande medida acompanham as exigências da Lei n.º 21/2014, de 16 de abril, designadamente:

“i) inexistência de método alternativo à investigação sobre seres humanos, de eficácia comparável;

ii) os riscos em que a pessoa pode incorrer não sejam desproporcionados em relação aos potenciais benefícios da investigação;

iii) o projeto de investigação tenha sido aprovado pela instância competente, após ter sido objecto de uma análise independente no plano da sua pertinência científica, incluindo uma avaliação da relevância do objectivo da investigação, bem como de uma análise pluridisciplinar da sua aceitabilidade no plano ético;

iv) a pessoa que se preste a uma investigação seja informada dos seus direitos e garantias previstos na lei para a sua proteção;

v) o consentimento referido no art.5.º tenha sido prestado de forma expressa, específica e esteja consignado por escrito. Este consentimento pode, em qualquer momento, ser livremente revogado”.

Destes requisitos destacamos:

– a “aprovação por comissão de ética” – pelo que me parece adequado que as Comissões de Ética dos Hospitais e a Comissão de Ética para a Investigação Clínica vão acompanhando os casos de prescrição “off-label” mais inovadoras, que estejam já na fronteira de um verdadeiro (embora informal) ensaio clínico de medicamento, isto é, o teste de um medicamento autorizado (para certas indicações ou em certas doses) para uma nova indicação: o Covid-19.

– a exigência de um “consentimento expresso e por escrito após informação e esclarecimento exaustivo e personalizado”.
Não há evolução da medicina sem inovação, mas o “bem-estar do doente” tem que ter a primazia sobre outros valores.

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