Autora: Ana Elisabete Ferreira, Investigadora do Centro de Direito Biomédico,
Universidade de Coimbra, Portugal.
Resumen: No presente artigo descrevemos a controvérsia doutrinal e jurisprudencial em torno da caracterização do ato médico como obrigação de meios ou obrigação de resultado para efeitos de fixação da responsabilidade civil do médico, fazendo uma recensão da jurisprudência portuguesa mais atual.
Sumario:
1. Descrição sumária do caso.
2. Remissão para publicações suscetíveis de consulta.
3. Apresentação da questão jurídica subjacente ao caso concreto.
4. Teses/posições doutrinal e jurisprudencialmente controversas sobre a questão jurídica subjacente ao caso concreto.
5. Conclusões.
1. No caso que serve de base à presente exposição, que tivemos o privilégio de acompanhar profissionalmente, a Autora (A) veio participar criminalmente, e deduzir pedido de indemnização cível por danos patrimoniais e não patrimoniais, contra o médico (R) pela morte do segundo gémeo de dois, com poucos minutos de vida, alegadamente causada pela não deteção atempada da morte in útero do primeiro feto. A A. fundamenta a sua pretensão no facto de ter sido atendida em contexto de urgência hospitalar pelo R. que, negligentemente, não teria diligenciado os exames complementares de diagnóstico necessários à perceção da morte fetal do primeiro gémeo. Segundo a A., dado o historial da gravidez, considerada de alto risco, deveria o médico réu ter efetuado exames diferenciados, de modo a detetar o problema e extrair o feto sobrevivo a tempo de evitar sequelas, o que não fez, consubstanciando tal conduta erro médico e violação das leges artis. O tratamento concreto seria uma «obrigação de resultados» para o médico, que não poderia ter deixado de operar mais/outros exames e proceder ao tratamento adequado a salvar a vida do segundo gémeo, que nasceu 17 minutos depois do parto com sinais de stress e anoxia. Em consequência, segundo a A., a conduta do R. reconduzir-se-ia ao homicídio por negligência, espoletando a respetiva responsabilidade civil.
Defendeu-se o R. alegando, por um lado, que não existiam quaisquer indícios que fizessem suspeitar da morte do primeiro feto quando atendeu a A. em contexto de urgência – ouviu os dois focos fetais e não havia quaisquer queixas da gestante – e que, por outro lado, tinha efetuado a examinação necessária e correspondente às queixas de A., operando tudo quanto é protocolarmente adequado, de acordo com as boas práticas médicas, dentro dos meios disponíveis e correntemente utilizados nos serviços de Urgência daquele hospital, não tendo em caso algum violado as leges artis da profissão, nem cometido qualquer erro médico, mais não estando ao seu alcance. Alegou ainda o R. que as diligências médicas, bem como os tratamentos prestados, consubstanciam para o médico uma «obrigação de meios», e em caso algum uma «obrigação de resultados», pois que quer a interpretação dos sintomas, quer a interpretação dos exames, quer os tratamentos médicos são insuscetíveis de uma precisão de 100%, não estando, em absoluto, na dependência do médico.
2. Remissão para publicações suscetíveis de consulta: Ferreira de Almeida, Carlos: “Os contratos civis de prestação de serviço médico” in Direito da Saúde e Bioética, Lisboa: AAFDL, 1996; Pedro, Rute Teixeira: “Da Tutela Do Doente Lesado – Breves Reflexões” in Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, disponível em http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/RTPedro2008.pdf¸ Pereira, André Gonçalo Dias: Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, Coimbra: Coimbra Editora, 2015; Sinde Monteiro, Figueiredo Dias: “Responsabilidade Médica em Portugal”, Separata do Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa, 1984; Sousa, Luís Filipe Pires: O Ónus da Prova na Responsabilidade Civil Médica. Questões Processuais atinentes à tramitação deste tipo de ações, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 2012/2013.
3. Uma nota prévia: importa começar por esclarecer que, no âmbito de uma estrita aplicação da legislação vigente, a presente questão só se colocaria quando a relação entre médico e paciente decorresse em contexto de clínica privada, existindo, aí sim, uma autêntica relação contratual que, embora talvez com algumas nuances, permitiria lançar mão do regime geral das Obrigações. Fora do contexto contratual, em princípio, não faria sentido recorrer à distinção entre obrigações de meios e de resultado. Em contexto de hospital público ou equiparado, aplicar-se-ia aos casos de negligência médica o disposto na Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, que estabelece o Regime Jurídico da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado pelos atos dos entes públicos e seus funcionários. Segundo este regime, o Estado é civilmente responsável pelos atos do pessoal médico (e outros), estando aliás o direito de regresso dependente da verificação de negligência grosseira – sendo a culpa leve insuscetível de espoletar a responsabilidade civil individual do médico perante o hospital. Assim, nos casos em que o litígio surge num hospital público – que são, na realidade, a maioria dos casos – o demandado seria sempre o Estado e a ação deveria intentar-se e prosseguir nos tribunais administrativos. No entanto, verifica-se recorrentemente que, embora o ato médico em causa tenha sido praticado num hospital público, o lesado recorre aos tribunais judiciais e demanda diretamente o médico que julga responsável, deduzindo pedido cível junto ao procedimento criminal contra o mesmo profissional.
Ora, existindo no ordenamento jurídico português um sistema dual de responsabilidade civil médica, que é diferente consoante o profissional preste a sua atividade em clínica privada ou em hospital público, a questão da natureza da relação médico-paciente e as suas implicações jurídicas afiguram-se muitíssimo delicadas.
Idealmente, segundo nos parece, sempre que o ato médico alegadamente danoso tivesse ocorrido em hospital público ou equiparado, deveria o tribunal comum considerar-se incompetente para a decisão do pedido cível, que deveria ser apreciado em tribunal administrativo e ser deduzido contra o Estado. O facto de tal não acontecer determina que esta questão da natureza jurídica do ato médico, já de si delicada, obtenha, por vezes, respostas jurisprudenciais que diríamos paradoxais.
Ademais, e ainda que assumíssemos que a relação médico-paciente em hospital público assume natureza puramente extracontratual, uma vez que não existe um contrato entre o médico e o paciente, mas apenas entre este e o hospital, sempre restaria perguntar se a distinção entre obrigações de meios e obrigações de resultado não seria bem-vinda também ali, tendo em conta o facto de a relação que se estabelece entre o médico e o paciente assumir um caráter de grande proximidade existencial, a exigir sempre – se não um contrato – um acordo de intenções entre ambos, substanciado, desde logo, na exigência de consentimento informado para todos os atos e intervenções.
Subjacente ao caso concreto, encontramos uma questão jurídica principal e, ao seu lado, várias outras questões que poderemos designar como complementares. A questão jurídica principal pressupõe que a relação que se estabelece entre o médico e o paciente é uma relação de natureza prima facie contratual – consubstanciando um contrato de prestação de serviços, onde são partes o doente e o médico, na clínica privada, ou o doente e o hospital do qual o médico é agente, em contexto público [Quanto à questão da natureza da relação e da responsabilidade que se estabelece entre médico e paciente encontramos, na Doutrina, essencialmente 3 posições: 1) na clínica privada a responsabilidade é puramente contratual e no hospital público é puramente extracontratual; 2) na clínica privada a relação é contratual, enquanto no hospital público é contratual e extracontratual; 3) quer na clínica privada quer no hospital público a responsabilidade é, simultaneamente, contratual e extracontratual. Cfr.: Pereira, André Gonçalo Dias: “Responsabilidade Civil: o Médico entre o Público e o Privado” in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. 89 (2013), pp. 253-304]. Posto isto, a questão prende-se com a identificação das situações em que o ato médico configura uma obrigação de meios ou uma obrigação de resultado, para efeitos da ponderação dos pressupostos da ilicitude e da culpa.
Adjacente a esta questão primordial, cumpre perguntar se a obrigação de meios e a obrigação de resultado, ou qual delas, aciona a presunção de culpa do devedor nos termos do art. 799.º do nosso Código Civil, bem assim, saber qual a fronteira entre a culpa e a ilicitude para efeitos do ónus da prova, e com que fundamentos espoletar a responsabilidade civil quando, em sede de responsabilidade penal, se determinar a absolvição do arguido.
Segundo André Dias Pereira (in Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, “a distinção entre obrigações de meios e obrigações de resultado e a sua conjugação com a presunção de culpa, prevista no art. 799.º, n.º 1), deve merecer especial cautela e atenção. Esta presunção de culpa tem-se revelado de grande importância na jurisprudência portuguesa, podendo-se afirmar que este é o entendimento doutrinal e jurisprudencial dominante”. A maioria dos Autores defende que, muito embora caiba ao demandante o ónus da prova da violação das leges artis (ilicitude), no tocante à culpa, deve a mesma presumir-se, nos termos do art. 799.º, cabendo ao médico o ónus da prova da falta de culpa, isto é, a prova de que, naquelas circunstâncias, não podia e não devia ter agido de maneira diferente”.
Por outras palavras, para a maioria da jurisprudência portuguesa, independentemente de estar em causa uma obrigação de meios ou uma obrigação de resultado, a responsabilidade civil médica, quando provado o vínculo contratual, assumiria uma estrutura probatória atípica, na medida em que ao lesado cumpriria provar a verificação de apenas quatro dos cinco pressupostos tradicionais da responsabilidade civil – o facto, a ilicitude, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano – uma vez que a culpa do médico, enquanto devedor, encontra-se a partir daí presumida, nos termos gerais dos artigos 798.º e 799.º do Código Civil. Ao médico cumpriria, assim, ilidir a presunção legal de culpa que sobre si recai, vale dizer, provar a sua não-culpa.
Segundo Teixeira de Sousa (“Sobre o ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil Médica” in Direito da Saúde e Bioética, pp. 125-137), a obrigação que o médico assume não deve qualificar-se como uma obrigação de meios, mas como uma obrigação de risco ou de resultado aleatório, isto porque “o médico não se obriga apenas a usar a sua melhor diligência para obter um diagnóstico ou conseguir uma terapia adequada, antes se vincula a fazer uso da sua ciência e aptidão profissional para a realização do diagnóstico e para a definição da terapia aconselhável. Ainda que o médico não possa responder pela obtenção de um resultado, ele é responsável perante o paciente pelos meios que usa (ou deve usar) no diagnóstico ou no tratamento”, podendo essa responsabilidade ser contratual ou extracontratual, ou mista – contratual e extracontratual. O Autor é da opinião de que muito embora a presunção de culpa do devedor estabelecida no art. 799.º, n.º 1, do Código Civil se justifique plenamente na generalidade das obrigações contratuais, todavia, essa mesma presunção de culpa não se justifica na área da responsabilidade médica. Essencialmente, porque “a existência de uma relação contratual entre o médico e o paciente não acrescenta, na área da responsabilidade profissional, qualquer dever específico aos deveres gerais que incumbem a esse profissional, pelo que parece não dever atribuir-se qualquer relevância, quanto ao ónus da prova da culpa, à eventual celebração de um contrato entre esses sujeitos. Dado que a posição do médico não deve ser sobrecarregada, através da repartição do ónus da prova, com a demonstração de resultados que não garantiu, nem podia garantir, o regime do ónus da prova da culpa deve ser sempre o da responsabilidade extracontratual” (sublinhado nosso).
Da perspetiva de Rute Teixeira Pedro (veja-se “Da Tutela Do Doente Lesado – Breves Reflexões” in Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, disponível em http://www.estig.ipbeja.pt/~ac_direito/RTPedro2008.pdf, acedido em 13-12-2014), pelo contrário, vigora para a responsabilidade médica o princípio geral da culpa, pelo que se aplica o disposto nos artigos 483.º e 799.º do Código Civil, para a responsabilidade extracontratual e contratual, respetivamente. O que significa que, embora a regra seja a de que ao doente lesado cabe provar a verificação de todos os pressupostos de que depende a responsabilidade civil no caso concreto – ou seja, a ilicitude, na forma da violação das «leges artis», e a culpa, na forma da negligência – casos há em que se deve presumir a culpa do médico, e que são as descritas no n.º 2 do artigo 493.º do Código Civil, para a responsabilidade extracontratual, e no artigo 799.º/1 do mesmo diploma, para a responsabilidade contratual, nesta última só sendo linear para as situações em que existe uma obrigação de resultado, ou, em face de uma obrigação de meios, quando (casuisticamente) se entenda que não deve ser afastada. Na apreciação da Autora, será vantajoso para a justeza do processo judicial que se faça operar as referidas presunções de culpa mesmo em caso de mera obrigação de meios, porque a relação jurídico-processual é muito desequilibrada, sendo o lesado, habitualmente, um leigo nos detalhes técnicos da matéria que tem, nos termos gerais, o dever de provar em juízo. Segundo a Autora, “a complexidade probatória e a inerente margem irrefragável da incerteza gnoseológica na apreensão do verdadeiro decurso dos acontecimentos vividos converte-se, assim, num escudo protector do profissional, quase inexpugnável para o doente” (cfr. op. cit. p. 424).
E, deste modo, as regras gerais da repartição do encargo probatório entre as partes consubstanciariam, no âmbito da responsabilidade médica, “um mecanismo de pré-determinação” sistemática de insucesso de uma delas (o doente) em favor de outro (o médico).
Colocadas as várias teses sobre a mesa, podemos em suma afirmar que esta questão se afigura especialmente complexa, a três níveis: 1) implica definir qual a natureza da relação que se estabelece entre o médico e o paciente, 2) implica esclarecer se o ato médico consubstancia, em regra, uma obrigação de meios ou uma obrigação de resultado e, por outro último, 3) pressupõe clarificar se deve ou não aplicar-se à responsabilidade médica a presunção de culpa do devedor, como se de uma relação contratual comum se tratasse.
4. Impõe-se, pois, observar alguns arestos jurisprudenciais acerca desta questão. Seguidamente, enunciaremos vários acórdãos, dos quais optámos por transcrever os excertos relevantes do respetivo sumário sublinhando o que essencialmente importa nesta sede, de modo a, a final, elaborar algumas conclusões a partir da sua análise conjugada.
1.º Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09-03-2010, Proc. n.º 1384/08.8TVLSB.L1-7, Relator: MARIA DO ROSÁRIO MORGADO.
Sumário:
“Por força do contrato de prestação de serviços, o médico obriga-se a prestar ao doente a assistência médica necessária, empregando os conhecimentos e técnicas disponíveis, respeitando as leges artis, tendo em vista tratar (curar) o doente e diminuir-lhe o sofrimento.
Além disso, o médico, está ainda obrigado a vigiar/acompanhar o doente, no pós-operatório, prestando-lhe todos os cuidados que o seu estado exija, bem como todas as informações sobre o seu estado de saúde.
2. Ainda que se entenda que a obrigação a que o médico está adstrito é uma obrigação de meios, tendo presente a especial dignidade dos interesses afectados pelo (in)cumprimento, o desequilíbrio (estrutural) da relação estabelecida entre o médico e o doente, a particular dificuldade na efectivação da tutela de tais interesses, à luz das preocupações crescentes do legislador de favorecimento dos lesados, enquanto parte contratual mais débil, impende sobre o prestador de serviços médicos uma presunção de culpa, que lhe cumpre elidir, se pretender furtar-se à obrigação de indemnizar, por falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso (nos termos gerais da responsabilidade contratual, como decorre do art. 799º, nº 1, do CC).
3. Consequentemente, o ónus da prova da diligência recairá sobre o médico, cabendo ao lesado fazer a prova da existência do vínculo contratual e dos factos demonstrativos do seu incumprimento ou cumprimento defeituoso”.
2.º Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-12-2011, Proc. n.º 209/06.3TVPRT.P1.S1, Relator: GREGÓRIO SILVA JESUS.
Sumário:
“I – No que toca à responsabilidade civil médica, não prevê a lei casos de responsabilidade objectiva ou de responsabilidade por factos lícitos danosos, tão só admite a responsabilidade contratual e a extracontratual ou aquiliana.
II – Tendo-se o autor apresentado aos réus médicos a coberto de um contrato de seguro celebrado pela sua entidade patronal e tendo estes actuado no âmbito de um contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos, previsto no art. 1154.º do CC, que mantinham com a seguradora, o conteúdo da relação estabelecida entre o autor e os médicos está impressivamente contratualizado, encontrando-se no domínio da responsabilidade civil contratual.
III – Se é inquestionável que a execução de um contrato de prestação de serviços médicos pode implicar para o médico uma obrigação de meios ou uma obrigação de resultado, o corrente na prática é o acto médico envolver da parte do médico, enquanto prestador de serviços que apelam à sua diligência e ciência profissionais, a assunção de obrigação de meios. Em regra, o médico a só isto se obriga, apenas se compromete a proporcionar cuidados conforme as leges artis e os seus conhecimentos pessoais, somente se vincula a prestar assistência mediante uma série de cuidados ou tratamentos normalmente exigíveis com o intuito de curar.
IV – Importa ponderar a natureza e objectivo do acto médico para, casuisticamente, saber se se está perante uma obrigação de meios ou perante uma obrigação de resultado.
V – Assente que o autor foi submetido a intervenção cirúrgica à coluna e nada mais se tendo provado que ajude a qualificar com precisão a obrigação, desconhecendo-se como surgiu a opção da sua submissão à intervenção cirúrgica, por iniciativa de quem, qual o objectivo da operação, que tipo de compromisso médico foi assumido, se é que tal aconteceu, nomeadamente com algum comprometimento de resultado e qual, se foi informado dos riscos inerentes, resta então ser notório que, por regra, no caso de intervenções cirúrgicas, e muito particularmente nas intervenções à coluna, não se assegura a cura mas a procura da atenuação do sofrimento do doente, estando cometida ao médico-cirurgião uma obrigação de meios.
VI – Sempre que se trate de uma mera obrigação de meios, que não de uma obrigação de resultado, incumbe ao doente o ónus de provar a falta de diligência do médico.
VII – Tem o paciente/lesado de provar o defeito de cumprimento, porque o não cumprimento da obrigação do médico assume, por via de regra, a forma de cumprimento defeituoso, e depois tem ainda de demonstrar que o médico não praticou todos os actos normalmente tidos por necessários para alcançar a finalidade desejada.
VIII – Feita essa prova, então, funciona a presunção de culpa, que o médico pode ilidir demonstrando que agiu correctamente, provando que a desconformidade não se deveu a culpa sua por ter utilizado as técnicas e regras de arte adequadas ou por não ter podido empregar os meios adequados.
IX – Em termos gerais, ponto comum à responsabilidade contratual e à responsabilidade extracontratual, ter o médico agido culposamente significa ter o mesmo agido de tal forma que a sua conduta lhe deva ser pessoalmente censurada e reprovada, pois em face das circunstâncias concretas do caso, o médico devia e podia ter actuado de modo diferente.
3.º Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-05-2014, Proc. n.º 220040/11.OYIPRT.L1-8, Relator: ANA LUÍSA GERALDES-
Sumário:
“1. É praticamente uniforme o entendimento de que a obrigação a que um médico (ou uma entidade hospitalar) está adstrito perante o seu paciente se concretiza através da prestação dos cuidados de saúde de acordo com as regras das leges artis, em função do estado da técnica actual e de acordo com os interesses do doente.
2. Trata-se de uma obrigação de meios e não uma obrigação de resultado, exigindo-se que o profissional ou a entidade clínica/hospitalar actue em conformidade com a diligência que a situação clínica do paciente exige.
3. O médico deve, assim, no exercício da sua actividade, e em todas as circunstâncias, usar de toda a diligência, profissionalismo, dedicação ou perícia que as concretas circunstâncias exigirem.
4. O paciente/doente ou utente dos serviços hospitalares que invoque incumprimento ou cumprimento defeituoso do exercício da medicina e dos cuidados médicos que lhe foram prestados, no âmbito do contrato celebrado, e abarcados pelo exercício das actividades médicas a que foi submetido, e que se sinta, por isso, lesado, deve alegar e provar o nexo de causalidade entre a desconformidade verificada e que essa desconformidade decorreu dos actos praticados pelo médico.
5. Quer isto dizer que, se incumbe ao Hospital Réu a prova da diligência do pessoal médico e técnico ao seu serviço, cabe à Autora o ónus de alegar e provar a matéria relativa aos restantes pressupostos da responsabilidade civil, como sejam, além do facto praticado, a ilicitude, o nexo de causalidade e os danos.
6. No caso sub judice a responsabilidade do Hospital existe traduzida no incumprimento de deveres de diligências que, como se assinalou ao longo deste Acórdão, ocorreram em duas fases distintas do parto: no momento da pressão exercida sobre o fundo uterino da A., pela médica, quando aquela estava internada e a ser intervencionada cirurgicamente, a ponto de lhe terem partido 2 costelas, e em momento posterior quando a Autora se deslocou à urgência do Hospital devido às dores que a impossibilitavam de se mexer, e que continuou a sentir após o parto e ter tido alta do Hospital, e ninguém a informou que tais costelas estavam partidas e a medicou devidamente.
4.º Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-03-2008, Proc. n.º 08A183, Relator: FONSECA RAMOS.
Sumário:
“I – Tendo o Autor solicitado ao Réu, enquanto médico anatomopatologista, a realização de um exame médico da sua especialidade, mediante pagamento de um preço, estamos perante um contrato de prestação de serviços médicos – art. 1154.º do Código Civil.
II – A execução de um contrato de prestação de serviços médicos pode implicar para o médico uma obrigação de meios ou uma obrigação de resultado, importando ponderar a natureza e objectivo do acto médico para não o catalogar a prioristicamente naquela dicotómica perspectiva.
III – Deve atentar-se, casuisticamente, ao objecto da prestação solicitada ao médico ou ao laboratório, para saber se, neste ou naqueloutro caso, estamos perante uma obrigação de meios – a demandar apenas uma actuação prudente e diligente segundo as regras da arte – ou perante uma obrigação de resultado com o que implica de afirmação de uma resposta peremptória, indúbia.
IV – No caso de intervenções cirúrgicas, em que o estado da ciência não permite, sequer, a cura mas atenuar o sofrimento do doente, é evidente que ao médico cirurgião está cometida uma obrigação de meios, mas se o acto médico não comporta, no estado actual da ciência, senão uma ínfima margem de risco, não podemos considerar que apenas está vinculado a actuar segundo as legis artes; aí, até por razões de justiça distributiva, haveremos de considerar que assumiu um compromisso que implica a obtenção de um resultado, aquele resultado que foi prometido ao paciente.
V – Face ao avançado grau de especialização técnica dos exames laboratoriais, estando em causa a realização de um exame, de uma análise, a obrigação assumida pelo analista é uma obrigação de resultado, isto porque a margem de incerteza é praticamente nenhuma.
VI – Na actividade médica, na prática do acto médico, tenha ele natureza contratual ou extracontratual, um denominador comum é insofismável – a exigência [quer a prestação tenha natureza contratual ou não] de actuação que observe os deveres gerais de cuidado.
VII – Se se vier a confirmar a posteriori que o médico analista forneceu ao seu cliente um resultado cientificamente errado, então, temos de concluir que actuou culposamente, porquanto o resultado transmitido apenas se deve a erro na análise.
VIII – No caso dos autos é manifesto que se acha feita a prova de erro médico por parte do Réu, – a realização da análise e a elaboração do pertinente relatório apontando para resultado desconforme com o real estado de saúde do doente.
IX – Por causa da actuação do Réu, o Autor, ao tempo com quase 59 anos, sofreu uma mudança radical na sua vida social, familiar e pessoal, já que se acha impotente sexualmente e incontinente, jamais podendo fazer a vida que até então fazia, e é hoje uma pessoa cujo modo de vida, física e psicologicamente é penoso, sofrendo consequências irreversíveis, não sendo ousado afirmar que a sua auto-estima sofreu um abalo fortíssimo.
X – Os Tribunais Superiores têm vindo a aumentar as compensações por danos não patrimoniais, mas a diversidade das situações e, sobretudo, não sendo comparáveis a intensidade dos danos e o grau de culpa dos lesantes, que só casuisticamente podem ser avaliados, não é legítimo invocar as compensações que são arbitradas, por exemplo, em caso de lesão mortal, com aqueloutras que afectam distintos direitos de personalidade.
XI – Atendendo aos factos e ponderando os valores indemnizatórios que os Tribunais Superiores vêm praticando, a compensação ao Autor pelos danos não patrimoniais sofridos deve ser, equitativamente, fixada em € 224.459,05.
XII – No caso dos autos, não tendo havido actualização da indemnização, e radicando, em última análise, o pedido indemnizatório, num facto ilícito cometido pelo Réu, tem pertinência a aplicação do regime constante da 2.ª parte do n.º 3 do art. 805 º do Código Civil.”
“Assim, se considerarmos que a prestação do Réu envolvia uma obrigação de meios, provado no caso da análise que lhe competia fazer actuou com os deveres de prudência e a técnica sugerida pelas legis artis – não estaria ele vinculado a determinar, com rigor, se o material biológico que se comprometeu analisar tinha ou não células cancerígenas.
Com o devido respeito, entendemos que face ao avançado grau de especialização técnica dos exames laboratoriais, estando em causa a realização de um exame, de uma análise, a obrigação assumida pelo analista é uma obrigação de resultado, isto porque a margem de incerteza é praticamente nenhuma.
Mal estariam os pacientes se os resultados de análises, ou exames laboratoriais, obrigassem, apenas, os profissionais dessa especialidade a actuar com prudência, mas sem assegurarem um resultado” (Excerto do Relatório).
5.º Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-06-2014, Proc. n.º 1333/11.6TVLSB.L1.S1, Relator: LOPES DO REGO.
Sumário:
“1. Age com culpa o médico anátomo-patologista que diagnostica erradamente, por deficiente interpretação dos exames realizados, doença oncológica ao lesado, omitindo e silenciando as dúvidas que resultavam razoavelmente da interpretação do resultado objectivo desses exames e não procurando supri-las através da realização de outros possíveis exames complementares ou da obtenção de outras opiniões credenciadas – determinando tal violação do dever diligência a sujeição do lesado a intervenção cirúrgica (geradora, em maior ou menor grau, de problemas colaterais severos) desnecessária e desproporcional face ao tipo de patologia que realmente o afectava, violando-se desta forma o direito do paciente de optar livre e esclarecidamente pela realização ou não realização da intervenção cirúrgica que afectou o seu direito à saúde e integridade física.
2. Tendo o autor, à data com 55 anos de idade, sofrido, em decorrência da acção da ré, forte abalo psíquico pelo errado diagnóstico de doença oncológica, que se manteve durante cerca de dois meses, e grande sofrimento físico, e tendo ficado, na sequência da prostatectomia radical a que foi submetido, com sequelas permanentes ao nível da sua capacidade sexual, não merece censura a decisão da Relação em fixar o valor da indemnização por danos não patrimoniais no montante de €100.000.00”.
“Quanto à questão da culpa da recorrente no cometimento do erro de diagnóstico resultante da deficiente interpretação que fez dos dois exames que realizou – analisada naturalmente perante o quadro factual definitivamente fixado pela Relação – entende-se que nenhuma censura merece o sentido decisório constante do acórdão recorrido.
Na verdade, resultou provado que os resultados dos dois exames realizados pela R. para despistagem de possível patologia oncológica resultaram inconclusivos (…); para remover tais dúvidas, a R. efectuou outro exame, (…) o qual não foi também completamente conclusivo. Ora, perante tal acumulação de dúvidas possíveis acerca da natureza da patologia que afectava o A. – e da consequente necessidade e razoabilidade de ele se sujeitar à intervenção cirúrgica que acabou por realizar – a R. não recorreu a outros exames auxiliares ou complementares possíveis, nem pediu a opinião adicional de outros colegas na interpretação dos resultados não absolutamente concludentes dos dois exames que realizou (…) – optando antes por elaborar relatório clínico em que, com total omissão das dúvidas suscitadas acerca da concludência dos exames realizados, afirmava categoricamente, como conclusão segura do diagnóstico, que o A. padecia de adenocarcinoma (…).
Ou seja: a R., com tal comportamento, efectivamente violador do dever de diligência que incide sobre um médico anátomo-patologista colocado nas circunstâncias concretas do caso dos autos, afectou o direito do A., como paciente, a optar livre e esclarecidamente pela realização ou não realização da intervenção cirúrgica a que se submeteu (…)”.
Levantando, também, a questão da natureza da relação entre médico e paciente, bem como o problema do ónus da prova, gostaríamos de referir, todos do Supremo Tribunal Administrativo, os acórdãos seguintes, mais recentes:
O Acórdão de 29-05-2014, Proc. n.º 0922/11, Relator São Pedro;
O Acórdão de 09-10-2014, Proc. n.º 0279/14, Relator Costa Reis;
O Acórdão de 16-01-2014, Proc. n.º 0445/13, Relator São Pedro;
O Acórdão de 10-09-2014, Proc. n.º 0812/13, Relator São Pedro;
O Acórdão de 24-05-2012, Proc. n.º 0576/10, Relator Adérito Santos;
O Acórdão de 12-04-2012, Proc. n.º 0798/11, Relator António Madureira.
Tendo em conta a exposição já operada dos sumários dos cinco acórdãos que elencámos de início, e o objeto do presente tema de discussão, entendemos não caber na economia deste trabalho maiores desenvolvimentos ou referências, que poderão, ademais, discutir-se em sede de prova oral.
5. Sendo vasta a Doutrina neste tema, e assistindo nós a uma progressiva densificação e proliferação da jurisprudência em matéria de responsabilidade médica, mais não faremos, por ora, do que colocar em ênfase alguns aspetos da matéria, em jeito de conclusão.
Tendo em conta o contacto que tivemos com estas matérias, especialmente no âmbito do estágio de Advocacia, apraz-nos sublinhar o seguinte:
a) Segundo a Doutrina e a Jurisprudência dominantes, nas ações de responsabilidade médica pode sempre lançar-se mão dos regimes da responsabilidade contratual e extracontratual, delitual ou aquiliana, independentemente do ato médico danoso se ter verificado em contexto de hospital público ou privado. Pela nossa parte, somos de parecer que, existindo em Portugal – ao contrário do que sucede noutros ordenamentos jurídicos – um regime diferenciado para o público e para o privado, a relação entre médico e paciente em hospital público não deve considerar-se contratual, para todos os efeitos legais. O nosso entendimento é, pois, o de que vale para a responsabilidade médica me contexto público, apenas o Regime da Responsabilidade Extracontratual do Estado, não devendo o médico ser demandado diretamente.
b) Segundo a Doutrina e a Jurisprudência dominantes, ao doente cabe a prova da ilicitude – a prova de que o médico violou, ilicitamente, as «leges artis» adjacentes ao exercício da profissão. Se o doente provar isso – que, diga-se «en passant», é o mais difícil, dado o carácter algo aleatório da ciência médica, a sua complexidade e o seu discurso – a negligência médica (a culpa) presume-se. Esta presunção poderá ilidir-se, por exemplo, por referência à culpa do lesado (não revelou a sua história clínica, não efetuou diligentemente tratamentos, etc.) e/ou por referência à culpa do serviço («faute de servisse», falta/insuficiência/defeito de meios, equipamentos, instrumentos, recursos humanos e outros). Quanto a esta questão assolam-nos as maiores dúvidas, pois, tendo em conta o pressuposto anteriormente referido, parece-nos despropositado que, no contexto de clínica privada, se presuma a culpa do médico, face a um regime tão diferente para o público. Não obstante, gostaríamos de fazer notar que, mesmo assumindo como necessária uma repartição do ónus da prova, ela não favorece o doente, na medida em que a prova da violação das «leges artis» é a “verdadeira prova” do processo, a prova difícil. Assim sendo, talvez a referida presunção de culpa se afigure, afinal, irrelevante no âmbito da responsabilidade médica.
c) A Doutrina e a Jurisprudência portuguesas divergem quanto à questão de saber se a qualificação do ato médico como obrigação de meios afasta a repartição do ónus da prova entre o doente e o médico, havendo quem entenda que essa repartição procede sempre, e quem entenda, pelo contrário, que quando haja uma mera obrigação de meios não se aplica a presunção de culpa do médico.
Embora ilustres vozes doutrinais discordem da distinção entre obrigações de meios e de resultado, e embora a Doutrina dominante entenda que esta não se aplica, pelo menos no âmbito da responsabilidade extracontratual – do médico e/ou do Hospital –, a Jurisprudência tende a lançar mão desta distinção, considerando, em regra, que o ato cirúrgico configura uma obrigação de meios, e que a interpretação de um exame médico/análises clínicas já configura uma obrigação de resultado. Mais uma vez, sobrevêm-nos dúvidas. A verdade é que a distinção entre obrigações de meios e de resultado opera em variadas áreas, com proveito jurídico. Teoricamente, ela parece também ser de valia na responsabilidade médica. Contudo, as decisões jurisprudenciais parecem evidenciar o contrário: a Jurisprudência não domina os conceitos, aplica-os acriticamente, e chega a decisões que contrariam os pressupostos. A verdade é que é muito difícil caracterizar o ato médico como uma obrigação de resultado. Mesmo no caso da anatomia patológica. Mesmo no caso da cirurgia estética. A interpretação de resultados, os diagnósticos e os tratamentos não dependem só da atuação do médico. Somos de parecer que, quanto à interpretação de exames médicos, por exemplo, a Jurisprudência andou mal. A valia da distinção depende, pois, de considerarmos que o ónus da prova deve ou não ser repartido entre o médico e o doente. Sendo certo que não deverá considerar-se a cura, mas apenas o tratamento mais adequado, como resultado e, nesta medida, tanto podemos considerar que o ato médico é sempre uma obrigação de meios, como podemos considerar que é sempre uma obrigação de resultado… Independentemente de nos encontrarmos no contexto público ou no privado, já que em ambos os contextos os atos médicos, protocolados, são idênticos. Não se trata de operar uma distinção entre responsabilidade contratual e extracontratual, pois não é ela que define a natureza da obrigação do médico, que é sempre o cumprimento das boas práticas da profissão de acordo com a vontade do doente, existindo ou não um contrato com este. Assim, resta-nos concluir sublinhando que, num momento de grande proliferação de casos nesta matéria, importa sobretudo definir conceitos e aplicá-los recorrentemente, harmonizando as soluções, em nome das mais elementares exigências de segurança jurídica.