Contratos em tempos de pandemia: descumprimento e força maior

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Autor: Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Professor Titular de direito civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Correo electrónico: carlosedison@cerm.adv.br

1. Em tempos de crise, natural que as atenções convirjam para o momento patológico do negócio jurídico e, em especial, para as diferentes espécies de impossibilidade – tema, de resto, pouco desenvolvido, até a disseminação da peste, pela doutrina brasileira, salvo poucas exceções. Assiste-se, a partir de então, à proliferação de textos sobre variabilidades do descumprimento, nos quais se verifica certo consenso em torno da ideia de que os efeitos negativos provocados pela Covid-19 nas relações contratuais não conduzem a único resultado.

De fato, a depender da composição de interesses atingidos, no concreto programa contratual em análise, diversa será a qualificação do fato jurídico pandemia (a deflagrar, conforme o caso, hipóteses de resolução, resilição, revisão, redução, suspensão, sub-rogação, negociação, mediação etc.). Em outras palavras, apenas tendo em mente a causa, a função negocial aferida no dinamismo da relação em concreto, é que se pode delinear o exato efeito do lamentável evento sobre a base do pacto em foco.

Na prática, uma vez invocada a excludente pelo devedor que descumpre a obrigação, à indagação de a pandemia constituir força maior não se responde, como se vê, em unívoco. Claro que, dadas as dimensões superlativas do problema, os requisitos necessariedade e inevitabilidade muito provavelmente ter-se-ão por cumpridos (como se verá a seguir), algumas vezes por fato do príncipe.

Porém, somente em concreto pode-se construir resposta adequada às circunstâncias de cada espécie, em especial levando-se em consideração a “pluralidade de fatores vinculados ao deslinde do caso”. A enumeração é aberta e as circunstâncias são indissociáveis de apreciação global, mas, para fins didáticos, apresento-os divididos aqui em três blocos: (i) suporte fático, (ii) regramento contratual e, em particular, (iii) disciplina legislativa emergencial.

Quanto ao primeiro grupo, o intérprete deverá observar: o modo e o tempo em que os efeitos do ciclo epidêmico alcançam as prestações pactuadas; os possíveis meios alternativos de execução da prestação; os abalos do mercado em que se insere a atividade em análise; o eventual aumento do custo de insumos necessários à produção convencionada, ou sua possível substituição por equivalentes (cujo exemplo de destaque tem-se nas obrigações genéricas – art. 246, Código Civil do Brasil – CCB) etc. Do segundo, tomará em consideração a presença de cláusulas limitativas ou excludentes de responsabilidade; cláusulas de “hardship”; cláusulas de garantia; cláusulas de força maior; cláusulas penais; cláusula resolutiva expressa; cláusulas de mediação, conciliação e arbitragem; entre outras. Na síntese dialética fatualidade-normatividade (indissociáveis), o operador analisará os termos da estipulação contratual e sua natureza (contrato benéfico, paritário, de consumo), em meio às circunstâncias irrepetíveis que individualizam cada pactuação (eventual mora de uma ou de ambas as partes; os limites de sacrifício exigível do devedor), sem descurar da equação negocial no equilíbrio funcional do contrato.

O itinerário se completa com um terceiro fator a ser levado em conta no processo interpretativo, particularmente relevante no período pandêmico. Regimes legislativos emergenciais têm formulado políticas públicas que aportam benefícios às relações privadas, tais como empréstimo subsidiado, flexibilização do ambiente regulatório, subvenção de capital público, isenção fiscal, ou mesmo indenização securitária. Nesse quadrante, saber-se se um dos contratantes recebeu vantagem direta ou indireta constitui variável sine qua non na apreciação funcional do caso, sob pena de enriquecimento sem causa (CCB, art. 884) – situação ordinariamente normatizada em ordenamentos europeus que a denominam commodum de representação.

2. Ainda no ponto de vista aplicativo, regra geral das hipóteses de caso fortuito e força maior no ordenamento brasileiro firma a isenção de responsabilidade do devedor pelos prejuízos sofridos pelo credor decorrentes do incumprimento involuntário (CCB, art. 393).

Trata-se de causas de exoneração que – diferentemente da legítima defesa, do estado de necessidade e do exercício regular do direito, aptos a afastar a culpa – atuam no âmbito do nexo de causalidade, provocando seu rompimento, alheio à vontade do devedor, na cadeia normal de acontecimentos, razão pela qual caso fortuito e força maior mostram-se eficientes mesmo em ambientes de responsabilidade objetiva.

Seja como for, para configuração das aludidas excludentes, o ordenamento brasileiro elenca dois requisitos a partir do comando normativo do parágrafo único do mesmo artigo 393. O primeiro requisito consiste na “necessariedade” e se relaciona ao “modo de produção do fato impositivo em si”, que deve ser externo em relação à situação subjetiva das partes contratantes, as quais não concorrem para sua configuração. A pandemia da Covid-19 parece preencher o requisito da necessariedade, vez que se trata de acontecimento superveniente de origem externa à relação jurídica travada.

O segundo requisito, a “inevitabilidade”, sede de mais acirradas discussões, diz respeito aos “efeitos da ocorrência superveniente” na relação jurídica em concreto. Dessarte, havendo meios razoáveis e exigíveis de o devedor impedir que o fato necessário provoque efeitos prejudiciais na escorreita execução da prestação, deverá assim agir sob pena de inadimplemento. Como mencionado anteriormente, a pandemia da Covid-19 em princípio parece preencher também o requisito da “inevitabilidade”, dado que os efeitos se projetarão na relação negocial independentemente da atuação diligente das partes em evitá-los ou atenuá-los, ressalvadas circunstâncias avaliadas em concreto que indiquem o contrário.

Isso não significa, no entanto, que eventual impossibilidade de prestação será sempre causa de extinção da obrigação. Em breve esboço de uma teoria, as impossibilidades de cumprimento parecem apresentar, no rigor técnico, “diferentes graus” de incidência na concreta relação negocial. Pondo-se em escala, em primeiro plano tem-se a impossibilidade subjetiva em obrigações fungíveis, a resultar em eventual desempenho da prestação por terceiro, substituto do devedor, às expensas deste (CCB, art. 249); nas infungíveis, passo adiante, aflora o debate do “limite de sacrifício/exigibilidade” impostos ao devedor, à luz dos princípios contratuais contemporâneos. Em seguida, passa-se às impossibilidades temporárias, as quais, por atuarem como “fatores de diferimento de eficácia”, podem indicar redução da contraprestação, prorrogação de prazos, ou eventualmente suspensão de pagamento. Em nível mais avançado, encontram-se as impossibilidades parciais que, a depender da gravidade, à luz e em função do interesse útil do credor, podem sinalizar distintas consequências, desde a redução do programa contratual à parte aproveitável (CCB, art. 184) até a revisão (CCB, art. 317), ou mesmo a resilição, e a resolução dos contratos (CCB, art. 478). E, finalizando a gradação, destaca-se a impossibilidade definitiva, apta a exonerar o devedor, libertando-o de quase todas as consequências do inadimplemento (CCB, art. 393).

O debate que aqui se trava, a rigor, para além do cumprimento estrito dos requisitos de deflagração das excludentes – “necessariedade” do fato e “inevitabilidade” dos efeitos – gira em torno do “controle funcional do negócio em sua integralidade” diante do grau da impossibilidade e da atuação das partes no mister de evitar ou minorar possíveis efeitos prejudiciais em cada situação jurídica subjetiva. Ganha relevo, em particular, a função de regra de conduta que emana do princípio da boa-fé objetiva, no controle dinâmico do processo obrigacional.

3. A matéria de riscos, responsabilidades e sua gestão encontra-se no seio da autonomia privada, cabendo precipuamente às partes contraentes o modo pelo qual decidem se autorregular. A quem se imputarão riscos, a troco de que, é decisão que compete aos autores de cada negócio, na elaboração do concreto regulamento de interesses, e não ao legislador ou ao juiz.

Tal processo, de todo modo, não se dá ao alvedrio absoluto das partes. O operador do direito não pode descurar aqui da natureza dos valores e interesses em jogo em cada negócio. Assim, precisará distinguir entre contratos paritários e desiguais; entre vulnerabilidade patrimonial e existencial; entre bens e direitos disponíveis e indisponíveis; entre titularidades públicas e privadas; entre pessoas jurídicas e naturais; entre contratos de adesão ou de livre negociação e assim por diante.

Ademais, deve pautar-se pela observação das cautelas previstas em lei. Nesse sentido, o caput do artigo 393 do Código Civil, corolário dos princípios da boa-fé objetiva e da solidariedade social, exige que a assunção do risco de fortuito e de força maior seja expressa.

A gestão não pode, também, afastar normas de ordem pública, como o Código de Defesa do Consumidor, que, com o fim de corrigir desequilíbrio existente na relação consumerista, reputa nulas cláusulas que “impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor”. Em casos “justificáveis” e que o consumidor seja “pessoa jurídica”, a indenização poderá ser “limitada” (CDC, art. 51, inciso I e 25, caput).

Acrescente-se, ainda, que apenas os “riscos patrimoniais” podem ser distribuídos pela autonomia privada, pois admitir que a vítima assuma potenciais “riscos existenciais” que fossem objeto de barganha durante a negociação representaria manifesta violação à dignidade da pessoa humana (Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB, art. 1º, inciso III).

Por fim, a imputação de riscos deve dar-se de molde a observar o “equilíbrio funcional” da relação em concreto, com fundamento na solidariedade social (CRFB, art. 3º, inciso I), à luz da complexidade da relação em sua inteireza e para além da caracterização econômica, cuja vertente mais comum diz respeito aos binômios clássicos preço-serviço ou preço-coisa. Desse modo, para que seja merecedora de tutela à luz dos valores do ordenamento, fundamental que a equação contratual que dela resulta, independentemente do mérito de se ter efetivado uma melhor ou pior negociação, atue “no sentido de repelir o desequilíbrio disfuncional”.

4. A contingência do novo coronavírus, de outro turno, fez eclodir, tanto no plano interno como nas experiências estrangeiras, iniciativas legislativas a regular, no direito público e no privado, o problema da pandemia. No Brasil, vigora, desde 7 de fevereiro de 2020, data da publicação da Lei 13.979/2020 (que dispõe sobre medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública), conjunto de dispositivos específicos acerca do problema, (o Decreto Legislativo nº 6, de 20.3.2020, reconhece “estado de calamidade pública”, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101/2000), havendo outros tantos em tramitação.

O Projeto de Lei n° 1.179, de 2020, por exemplo, aprovado no Senado Federal e em trâmite na Câmara, institui regime jurídico emergencial transitório para o direito privado. Da louvável iniciativa parlamentar, colhe-se a preocupação do projeto e bem assim do substitutivo que lhe sucedeu em não revogar leis vigentes, mas tão só normatizar pontualmente relações de direito privado, no interior dos limites temporais assinalados.

Com tal desiderato, destacam-se, de suas previsões específicas, a suspensão ou impedimento, conforme o caso, dos prazos prescricionais, assim como dos prazos de aquisição de propriedade por usucapião, a partir da vigência da lei até o dia 30 de outubro de 2020.

O indigitado projeto cuida, ainda, dos temas da resilição, resolução e revisão dos contratos (arts. 6º e 7º). A proposta de exclusão, “tout court”, de revisão e resolução dos contratos em hipóteses de aumento da inflação, de variação cambial, de desvalorização ou de substituição do padrão monetário, embora calcada em posicionamentos que se extraem de decisões judiciais prevalecentes no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, e de parecer tentar conter uma esperada hiper judicialização, esbarra no problema da inviabilidade de o legislador, em abstrato, classificar fatos futuros e definir aprioristicamente o que seja fator capaz de deflagrar revisão, resolução do negócio ou o que constitui caso fortuito ou de força maior. Como demonstrado, apenas à luz das circunstâncias do caso concreto será possível averiguar se a superveniência desses fatos se mostra capaz de preencher os requisitos previstos no artigo 478 do Código Civil
Brasileiro a ensejar resolução por onerosidade excessiva, ou revisão judicial dos contratos (art. 317, CCB), ou, ainda, caso fortuito e força maior (art. 393, CCB). A preocupação em marcar a não retroatividade dos efeitos do fortuito e da força maior destina-se a evitar o aproveitamento oportunista da invocação das excludentes, o que de certa forma reforça a regra, relativa ao devedor moroso, da perpetuatio obligationis (art. 399, CCB).

Editada em 8 de abril, a Medida Provisória 948 dispõe sobre o cancelamento de serviços, de reservas e de eventos dos setores de turismo e cultura por conta do estado de calamidade. A dicção dos comandos normativos articulados pela MP privilegia e incentiva a realização de acordos entre fornecedores e consumidores – como a remarcação de serviços e eventos, e disponibilização de crédito para uso posterior. Enorme preocupação tem causado, no entanto, a dicção de seu artigo 5º, com a seguinte redação: “as relações de consumo regidas por esta Medida Provisória caracterizam hipóteses de caso fortuito ou força maior e não ensejam danos morais, aplicação de multa ou outras penalidades, nos termos do disposto no art. 56 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990”.

Trata-se de dispositivo de todo criticável. Em primeiro lugar, constata-se certa atecnia do texto ao estabelecer que relações de consumo “caracterizam hipóteses de caso fortuito ou força maior”. A relação jurídica, por definição, jamais constituirá caso fortuito ou força maior. Tais são qualificações de eventos supervenientes cujos efeitos em concreto projetam-se sobre a relação, como visto. Ainda mais grave, porém, é a inconstitucional tentativa de afastamento de direito fundamental à reparação de danos morais, por meio de Medida Provisória. A estapafúrdia previsão vai de encontro à tutela preferencial da pessoa humana e ao princípio da reparação integral.

5. Enfim, a administração dos efeitos devastadores da crise mundial impõe pauta que tome a alteridade como chave da resolução de problemas, conforme os influxos da boa-fé objetiva, expressão da solidariedade constitucional, e preferencialmente por meio de soluções construídas entre as próprias partes, em processo de autocomposição espontâneo ou encorajado pelo Estado (nudge).

Para as demandas não alcançadas pela incentivada desjudicialização, e em que se discuta a configuração da força maior e seus limites, o intérprete não deverá proceder de modo abstrato em busca de simples soluções apriorísticas, próprias dos raciocínios subsuntivos – não há mesmo como fixar em lei (ou, pior ainda, em medida provisória) o que seja evento de força maior. Na direção oposta, construirá sua convicção sobre a invocação da dirimente atento aos diferentes graus de impossibilidade da prestação, em função das circunstâncias e fatores que incidem, em concreto, na relação negocial em análise, à luz das previsões de seu próprio regulamento de interesses e dos valores do ordenamento jurídico brasileiro.

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