Habitação e “mora debitoris” em Portugal

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Autora: Sandra Passinhas, Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Correo elecrónico: sandrap@fd.uc.pt

1. A análise das medidas legislativas tomadas pelo Estado português a propósito da Covid-19 pode ser enquadrada em vários momentos temporais: no dia 13 de Março foi declarada a situação de alerta em todo o território nacional e foi aprovado o Decreto-Lei n.º 10-A/2020, que estabeleceu as primeiras medidas excepcionais e temporárias relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus; no dia 18 de Março, pelo Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, foi declarado o estado de emergência em Portugal, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, e que viria a ser regulamentado, no seu essencial, pela Lei 1-A/2020, de 19 de Março, e pelo Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de Março; no dia 2 de Abril, pelo Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020, foi renovada a declaração de estado de emergência, regulamentado agora pelo Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de Abril; a segunda renovação do estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, teve lugar a 17 de Abril, através do Decreto do Presidente da República n.º 20-A/2020. No momento em que escrevemos este texto, foi aprovada uma estratégia de levantamento de medidas de confinamento no âmbito do combate à pandemia da doença COVID 19, pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-C/2020, de 30 de Abril, e regulamentada pelo Decreto-Lei 20/2020, de 1 de Maio, de acordo com o roteiro europeu para o levantamento das medidas de contenção do coronavírus que a Comissão Europeia apresentou no dia 15 de Abril de 2020. O levantamento de medidas de confinamento no âmbito do combate à pandemia da doença COVID-19, parte de uma estratégia faseada, em períodos de 15 dias, que permitirá a avaliação dos impactos das medidas na evolução da pandemia. Neste momento, e após a cessação do estado de emergência no dia 3 de Maio, foi declarada pelo Governo, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, de 30 de Abril, a situação de calamidade em todo o território nacional até às 23:59 h do dia 17 de maio de 2020, sem prejuízo de prorrogação ou modificação na medida em que a evolução da situação epidemiológica o justificar.

2. No que diz respeito especificamente ao arrendamento para habitação, logo em 19 de Março, a já referida Lei n.º 1-A/2020 estabeleceu, no seu artigo 8.º, um regime extraordinário e transitório de proteção dos arrendatários, determinando que até à cessação das medidas de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, conforme determinada pela autoridade nacional de saúde pública, ficava suspensa a produção de efeitos das denúncias de contratos de arrendamento habitacional (e não habitacional) efetuadas pelo senhorio. A denúncia do arrendamento é, no direito português, uma forma de extinção típica dos contratos de arrendamento de duração indeterminada e, pelo inquilino, pode ser exercida a qualquer momento, com cumprimento do pré-aviso previsto na lei. Quanto ao senhorio, impõe-se, contudo, nos termos do artigo 1101.º do Código Civil, distinguir a denúncia motivada da denúncia imotivada ou injustificada. A primeira pode ter por fundamento a necessidade da casa para habitação, do senhorio ou de seu descendente de 1.º grau, ou a realização de obras de demolição, de remodelação ou restauro profundos. Já a denúncia imotivada requer um pré-aviso do senhorio emitido com uma longa antecipação, actualmente de cinco anos. A obrigação de desocupação do imóvel pode, pois, ser temporalmente muito distante do momento em que a parte negocial demonstrou vontade de extinguir o contrato, pelo que se tornou necessária a intervenção do legislador no sentido de não haver alguém desalojado em situação de plena pandemia. Note-se, todavia, que, havendo denúncia imotivada pelo senhorio, o arrendatário pode a qualquer momento, denunciar o contrato, independentemente de qualquer justificação, mediante comunicação ao senhorio com antecedência não inferior a 30 dias do termo pretendido do contrato.

3. Poucos dias depois, a Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril, veio alterar o artigo 8.º acima referido, alargando o seu âmbito, determinando que durante a vigência das medidas de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, conforme determinada pela autoridade de saúde pública e até 60 dias após a cessação de tais medidas, ficam suspensos os efeitos acima referidos e ainda: a caducidade dos contratos de arrendamento habitacionais e não habitacionais, salvo se o arrendatário não se opuser à cessação; e a produção de efeitos da revogação, da oposição à renovação de contratos de arrendamento habitacional e não habitacional efetuadas pelo senhorio. Do mesmo modo, o prazo de seis meses para a desocupação do imóvel previsto no artigo 1053.º do Código Civil, para os casos de morte do arrendatário, fica igualmente suspenso se o término desse prazo ocorrer durante esse período de tempo.

4. Posteriormente, a Lei n.º 4-C/2020, de 6 de Abril, estabeleceu um regime excepcional para as situações de mora no pagamento da renda devida nos termos de contratos de arrendamento urbano habitacional, no âmbito da pandemia COVID-19. O pagamento da renda, na falta de convenção em contrário das partes, deve ser efectuado no primeiro dia útil do mês a que respeita; caso o inquilino não pague a renda, as consequências são a obrigação de indemnizar o senhorio pela mora ou, eventualmente, a resolução do contrato. Existem, todavia, várias especificidades a referir.

Em primeiro lugar, cessa o direito à indemnização ou à resolução do contrato, se o locatário fizer cessar a mora no prazo de oito dias a contar do seu começo (artigo 1041.º, 2, do Código Civil). Constituindo-se o arrendatário em mora, o senhorio tem o direito de exigir, além das rendas em atraso, uma indemnização igual a 20% do que for devido, salvo se o contrato for resolvido com base na falta de pagamento. Enquanto não forem cumpridas as obrigações de pagamento da renda e da indemnização, o locador tem o direito de recusar o recebimento das rendas seguintes, os quais são considerados em dívida para todos os efeitos, conforme determinado no artigo 1041.º, n.º 3, do Código Civil português. Segundo o artigo 1083.º do Código Civil português, é fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento. Em particular, no que diz respeito à resolução pelo senhorio, é inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário.

A Lei n.º 4-C/2020 definiu um regime temporário, aplicável às rendas que se venceram a partir de 1 de Abril de 2020, aplicável, em primeiro lugar, quando se verificasse cumulativamente: a) uma quebra superior a 20 % dos rendimentos do agregado familiar do arrendatário face aos rendimentos do mês anterior ou do período homólogo do ano anterior; e b) a taxa de esforço do agregado familiar do arrendatário, calculada como percentagem dos rendimentos de todos os membros daquele agregado destinada ao pagamento da renda, seja ou se torne superior a 35%. Nos casos de mora do arrendatário, estabeleceu este diploma que o senhorio só tem direito à resolução do contrato de arrendamento, por falta de pagamento das rendas vencidas nos meses em que vigore o estado de emergência e no primeiro mês subsequente, se o arrendatário não efetuar o seu pagamento, no prazo de 12 meses contados do termo desse período, em prestações mensais não inferiores a um duodécimo do montante total, pagas juntamente com a renda de cada mês. O inquilino tem ainda acesso a um apoio financeiro: o artigo 5.º definiu que os arrendatários habitacionais, bem como, no caso dos estudantes que não aufiram rendimentos do trabalho, os respetivos fiadores, que tenham, comprovadamente a quebra referida no artigo 3.º, e se vejam incapacitados de pagar a renda das habitações que constituem a sua residência permanente ou, no caso de estudantes, que constituem residência por frequência de estabelecimentos de ensino localizado a uma distância superior a 50 km da residência permanente do agregado familiar, podem solicitar ao Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, I. P. (IHRU, I. P.), a concessão de um empréstimo sem juros para suportar a diferença entre o valor da renda mensal devida e o valor resultante da aplicação ao rendimento do agregado familiar de uma taxa de esforço máxima de 35 %, de forma a permitir o pagamento da renda devida, não podendo o rendimento disponível restante do agregado ser inferior ao indexante dos apoios sociais (IAS), que é de 438,81 Euros. Este regime só não é aplicável aos arrendatários habitacionais, cuja quebra de rendimentos determine a redução do valor das rendas por eles devidas, nos termos estabelecidos em regimes especiais de arrendamento ou de renda, como o arrendamento apoiado, a renda apoiada e a renda social.

Numa determinação inovadora, este diploma estabeleceu ainda que também teriam acesso a apoio financeiro os senhorios que apresentassem, cumulativamente, uma quebra superior a 20 % dos rendimentos do seu agregado familiar face aos rendimentos do mês anterior ou do período homólogo do ano anterior; e essa percentagem da quebra de rendimentos fosse provocada pelo não pagamento de rendas pelos arrendatários. Caso os arrendatários não recorram a empréstimo do IHRU, I. P., podem solicitar os senhorios solicitar ao IHRU, I. P., a concessão de um empréstimo sem juros para compensar o valor da renda mensal, devida e não paga, sempre que o rendimento disponível restante do agregado desça, por tal razão, abaixo do IAS. Este esquema regulatório, todavia, foi recebido com muita controvérsia e é, a nosso ver, de difícil sustentação a nível jurídico-constitucional, colocando-nos sérias reservas por violação do princípio da proporcionalidade ou adequação.

Quanto às entidades públicas com imóveis arrendados ou cedidos sob outra forma contratual, estas podem reduzir as rendas aos arrendatários que tenham, comprovadamente, uma quebra de rendimentos superior a 20 % face aos rendimentos do mês anterior ou do período homólogo do ano anterior, quando da mesma resulte uma taxa de esforço superior a 35 % relativamente à renda. Contudo, este regime não se aplica àqueles que sejam beneficiários de regimes especiais de arrendamento habitacional ou de renda, como o arrendamento apoiado, a renda apoiada e a renda social.

As entidades públicas com imóveis arrendados ou cedidos sob outra forma contratual podem, igualmente, isentar do pagamento de renda os seus arrendatários que comprovem ter deixado de auferir quaisquer rendimentos após 1 de março de 2020, ou estabelecer moratórias aos seus arrendatários.

Os arrendatários que se vejam impossibilitados do pagamento da renda têm o dever de informar o senhorio, por escrito, até cinco dias antes do vencimento da primeira renda.

Acresce que a cessação do contrato por iniciativa do arrendatário torna exigível, a partir da data da cessação, o pagamento imediato das rendas vencidas e não pagas.

Por último, o artigo 12.º determinou que a indemnização de 20% prevista no n.º 1 do artigo 1041.º do Código Civil, por atraso no pagamento de rendas que se vençam nos meses em que vigore o estado de emergência e no primeiro mês subsequente, não é exigível nas situações acima descritas. Igualmente, o disposto no n.º 3 do artigo 1041.º do Código Civil não é aplicável durante este período. Ficam, pois, inoperantes as consequências do não cumprimento pontual das rendas pelo inquilino, nomeadamente o pagamento de indemnização e a resolução do contrato.
Vejamos agora as medidas tomadas para proteger o mutuário de crédito à habitação.

5. Logo no início do estado pandémico, a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, suspendeu a execução de hipoteca sobre imóvel que constituísse habitação própria e permanente do executado.

Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26 de Março, estabeleceu medidas excecionais de proteção dos créditos das famílias, de que beneficiam as pessoas singulares, relativamente a crédito para habitação própria permanente que, à data de publicação do decreto-lei, preenchessem as seguintes condições: tivessem residência em Portugal e estivessem em situação de isolamento profilático ou de doença ou prestassem assistência a filhos ou netos, conforme estabelecido no Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, ou que tivessem sido colocados em redução do período normal de trabalho ou em suspensão do contrato de trabalho, em virtude de crise empresarial, em situação de desemprego registado no Instituto do Emprego e Formação Profissional, I. P., bem como os trabalhadores elegíveis para o apoio extraordinário à redução da atividade económica de trabalhador independente, e os trabalhadores de entidades cujo estabelecimento ou atividade tenha sido objeto de encerramento determinado durante o período de estado de emergência, nos termos do artigo 7.º do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março. Os beneficiários não podiam estar, a 18 de março de 2020, em mora ou incumprimento de prestações pecuniárias há mais de 90 dias junto das instituições, não se podiam encontrar em situação de insolvência, ou de suspensão ou cessão de pagamentos, ou já em execução por qualquer uma das instituições. Deveriam ainda os beneficiários ter a situação regularizada junto da Autoridade Tributária e Aduaneira e da Segurança Social. A Lei n.º 8/2020, de 10 de Abril, veio interpretar autenticamente este preceito, clarificando que estão abrangidos por esta protecção os regimes de crédito bonificado para habitação própria permanente.

6. O objecto da protecção estabelecida consistiu na constituição de uma moratória, em especial, a prorrogação, por um período igual ao prazo de vigência da medida adoptada, de todos os créditos com pagamento de capital no final do contrato, juntamente, nos mesmos termos, com todos os seus elementos associados, incluindo juros, garantias, designadamente prestadas através de seguro ou em títulos de crédito; ou a suspensão, relativamente a créditos com reembolso parcelar de capital ou com vencimento parcelar de outras prestações pecuniárias, durante o período em que vigorar a medida, do pagamento do capital, das rendas e dos juros com vencimento previsto até ao término desse período, sendo o plano contratual de pagamento estendido automaticamente por um período idêntico ao da suspensão, de forma a garantir que não haja outros encargos para além dos que possam decorrer da variabilidade da taxa de juro de referência subjacente ao contrato, sendo igualmente prolongados todos os elementos associados aos contratos abrangidos pela medida, incluindo garantias. Os beneficiários destas medidas podem, em qualquer momento, solicitar que apenas os reembolsos de capital, ou parte deste, sejam suspensos.

A extensão do prazo de pagamento referido não dá origem a qualquer incumprimento contratual, à activação de cláusulas de vencimento antecipado, à suspensão do vencimento de juros devidos durante o período da prorrogação, que serão capitalizados no valor do empréstimo com referência ao momento em que são devidos à taxa do contrato em vigor; nem à ineficácia ou cessação das garantias concedidas pelas entidades beneficiárias das medidas ou por terceiros, designadamente a eficácia e vigência dos seguros, das fianças e/ou dos avales. A prorrogação das garantias não carece de qualquer outra formalidade, parecer, autorização ou ato prévio de qualquer outra entidade, são plenamente eficazes e oponíveis a terceiros, devendo o respetivo registo, quando necessário, ser promovido pelas instituições.

7. Nos termos do artigo 5.º, os mutuários deveriam remeter, por meio físico ou por meio eletrónico, à instituição mutuante uma declaração de adesão à aplicação da moratória, e as instituições tinham um prazo máximo de cinco dias úteis após a receção da declaração e dos documentos exigidos para aplicar as medidas de protecção. Posteriormente, foi ainda acrescentado pela Lei 8/2020, com entrada em vigor a 11 de Abril, um dever de prestação de informação para as instituições que abrange o dever de divulgar e publicitar as medidas previstas nas suas páginas de Internet e através dos contactos habituais com os seus clientes, assim como de dar conhecimento integral destas medidas previamente à formalização de qualquer contrato de crédito sempre que o cliente seja uma entidade beneficiária. Esta lei veio ainda consagrar que os mutuários que acederem às medidas de apoio previstas não preenchendo os pressupostos para o efeito, bem como as pessoas que subscreverem a documentação requerida para esses efeitos, são responsáveis pelos danos que venham a ocorrer pelas falsas declarações, bem como pelos custos incorridos com a aplicação das referidas medidas excecionais, sem prejuízo de outro tipo de responsabilidade gerada pela conduta, nomeadamente criminal.

8. Cabe, por último, deixar uma nota sobre o futuro do mercado da habitação. A quebra do mercado turístico em Portugal levou à reafectação de imóveis destinados a alojamento local para arrendamentos de longa duração. A este aumento da oferta correspondeu um abaixamento do preço das rendas, o que pode indiciar uma renovação do mercado arrendatício em Portugal, como efeito colateral e temporário do estado pandémico causado pela Covid-19.

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