A responsabilidade civil dos menores no direito brasileiro.

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Autor: Nelson Rosenvald, Pós-Doutor em Direito Civil na Universidade Roma Tre (Itália), Procurador de Justiça do Ministério Público (MG-BR), Professor de Direito Civil do IDP (DF-BR). E-mail: nelson.rosenvald@me.com

Resumen: O Código Civil de 2002 modificou substancialmente a sistemática da responsabilidade civil dos incapazes. Há um dispositivo legal que autoriza responsabilizar pessoalmente o incapaz por um dano que cause. Todavia, em caráter de exceção dentro do sistema de reparação de danos, cuida-se de responsabilidade solidária e mitigada a lei civil busca essa modelação para a conciliação do princípio da dignidade humana da vítima e do incapaz. A conciliação dá-se pela fuga de extremos que só garantiriam a dignidade ao incapaz (se este não respondesse pelo dano e a vítima arcasse com os prejuízos) ou à vítima (se a indenização fosse integral e causasse um empobrecimento desmedido ao incapaz, privando-o do necessário). Essa é mais uma das inovações do Código Civil que evidenciam uma diferenciada abordagem das finalidades da responsabilidade civil: a cabal reparação dos danos, a fim de que a vítima possa repor o equilíbrio patrimonial subvertido pela lesão, mesmo que para tanto seja atingido o patrimônio de um inimputável.

Palabras clave: responsabilidade; incapacidade; menor; patrimônio.

Abstract: The Civil Code of 2002 made substantial changes in the system of extracontractual liability of the minors. There is a provision that allows their personal liability for damage caused by them. However, this liability is subsidiary and mitigated. The legislator set up this framework in order to conciliate human dignity and the protection of vulnerable people with the principle of full reparation. The conciliation is given by the leakage of extremes that only guaranteed dignity to the minors (if the outcome was the refusal of any compensation) or the victims (if the indemnity was total and strongly affects the assets of the minors). This is one of the innovations of the civil code that shows a differentiated approach to the purpose of civil liability.

Key words: liability; incapacity; minor; estate.

Sumario:
I. Introdução.
II. O artigo 928 do código civil.
III. A subsidiariedade como fundamento.
IV. A equidade como fundamento.
V. A emancipação.
VI. A extensão às pessoas com deficiência.
VII. Conclusão.

Referencia: Actualidad Jurídica Iberoamericana Nº 13, agosto 2020, ISSN: 2386-4567, pp. 716-733.

Revista indexada en SCOPUS, REDIB, ANVUR, LATINDEX, CIRC, MIAR

I. INTRODUÇÃO.

O título desse item, por si só, geraria perplexidades no direito clássico. Como se pode falar em responsabilidade civil dos incapazes? Eles, conceitualmente, não a teriam. Inexistindo o discernimento para praticar validamente os atos da vida civil, aqueles que carecem de condições psíquicas para distinguir entre o bem e o mal ou o certo e o errado não poderiam ser pessoalmente responsabilizados pelos danos que porventura causassem, mesmo que titularizassem patrimônio suficiente para suportar amplamente as lesões por eles praticadas.

Essa, de fato, era a solução no direito clássico. Como censurar o comportamento daqueles que não tinham condições subjetivas de se conduzir em sociedade conforme o imperativo legal? Porém, progressivamente, com o intuito de não deixar a vítima desamparada, legislação e jurisprudência vêm buscando formas de responsabilizar diretamente o incapaz quando imprescindível à composição do dano. O olhar do direito civil é alterado: em vez de mirar para a responsabilização do ofensor – em busca de um culpado –, procura-se acautelar a vítima, no sentido de lhe assegurar a reparação integral. A reparação cabal dos danos resultantes da violação de um dever geral de cuidado se converte na função ideal da responsabilidade civil, como forma de recomposição da situação da vítima ao instante anterior à lesão. Nesse afã de retorno ao status quo, mesmo que o agente seja inimputável ao tempo dos fatos (por menoridade ou interdição), se titularizar bens suficientes, terá que, em determinadas ocasiões, reparar os danos por ele causados.

O Código Civil de 2002 modificou substancialmente a sistemática da responsabilidade civil dos incapazes. Veremos, em pontos distintos, onde tal influência modificativa foi mais forte.

II. O ARTIGO 928 DO CÓDIGO CIVIL.

O art. 928 assim dispõe: “o incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes”. Temos, portanto, a partir do Código Civil vigente, dispositivo legal que autoriza responsabilizar pessoalmente o incapaz por um dano que cause. Todavia, em caráter de exceção dentro do sistema de reparação de danos, cuida-se de responsabilidade solidária e mitigada.

Note-se, como assinala JOSÉ FERNANDO SIMÃO, que a lei civil busca essa modelação para a conciliação do princípio da dignidade humana da vítima e do incapaz. A conciliação dá-se pela fuga de extremos que só garantiriam a dignidade ao incapaz (se este não respondesse pelo dano e a vítima arcasse com os prejuízos) ou à vítima (se a indenização fosse integral e causasse um empobrecimento desmedido ao incapaz, privando-o do necessário).

Essa é mais uma das inovações do Código Civil que evidenciam uma diferenciada abordagem das finalidades da responsabilidade civil: a cabal reparação dos danos, a fim de que a vítima possa repor o equilíbrio patrimonial subvertido pela lesão, mesmo que para tanto seja atingido o patrimônio de um inimputável. Alguém deve pagar a conta!

A norma faz genérica referência ao incapaz, porém, é igualmente apta a abranger aquele que, no momento da ação ou da omissão, não possui o necessário discernimento. Seriam os casos em que o agente se conduz em estado de inconsciência que não foi deliberada ou culposamente provocado por sua própria conduta. Pode-se ilustrar com hipóteses de sonambulismo ou os chamados atos reflexos. Nesses casos, é possível a aplicação da norma do art. 928 do Código Civil. Todavia, não se aplica o dispositivo quando o ofensor, maior e capaz, voluntariamente se pôs em estado de inimputabilidade, sendo este transitório. Ele sofrerá a reprovação social por ter culposamente se colocado em estado de inconsciência.

O incapaz não pratica ato ilícito, por ausência de seu elemento subjetivo, qual seja, a falta de discernimento ou maturidade para avaliar as consequências do seu comportamento.

Contudo, ele só será responsabilizado se estiver presente o elemento objetivo do ato ilícito: a antijuridicidade. O patrimônio do incapaz será excepcionalmente alcançado pela vítima se a sua ação ou omissão for contrária ao direito, uma conduta que se praticada por uma pessoa plenamente capaz seria sancionada como ofensiva ao sistema jurídico. Daí o acerto do Enunciado n. 590 do Conselho de Justiça Federal: “A responsabilidade civil dos pais pelos atos dos filhos menores, prevista no art. 932, inc. I, do Código Civil, não obstante objetiva, pressupõe a demonstração de que a conduta imputada ao menor, caso o fosse a um agente imputável, seria hábil para a sua responsabilização”.

III. A SUBSIDIARIEDADE COMO FUNDAMENTO.

A responsabilidade será subsidiária, devendo a vítima cobrar, inicialmente, dos responsáveis, só indo ao patrimônio do menor na hipótese de impossibilidade econômica daqueles. Assim, se o filho de 15 anos se apossa das chaves do carro do pai – que se encontrava escondida – e atropela um transeunte em razão da ausência de destreza ao volante, inicialmente a responsabilidade civil será exclusiva do genitor. Lembramos que o menor não comete ato ilícito, em razão de sua inimputabilidade. Quer dizer, os absoluta e relativamente incapazes praticam condutas comissivas e omissivas antijurídicas, mas ante a ausência de discernimento não serão sujeitos passivos de uma demanda de reparação de danos.

Em via de princípio, portanto, incide responsabilidade civil indireta de pais, tutores e curadores pelo fato do terceiro incapaz que se encontra sob a sua autoridade, seja pelo poder de família ou determinação judicial. Cuida-se de hipótese de responsabilidade civil complexa, pois o dano é causado por uma pessoa, mas a reparação recairá sobre a órbita patrimonial de outra. Nesse diapasão, preconiza o art. 932 do Código Civil: “São também responsáveis pela reparação civil: I – os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia; II – o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições”.

No exemplo citado do filho atropelador, poderia o pai se eximir sob a alegação de ausência de culpa in vigilando, pelo fato de ter dado ótima educação ao filho e em nada haver contribuído para o resultado danoso? A resposta será negativa, pois aqui não mais viceja a tese da culpa presumida e, portanto, passível de desconstituição. A responsabilidade indireta ora tratada é de natureza objetiva, incidindo sobre pais, tutores e curadores independentemente da aferição de seu comportamento. Não se requer a demonstração de qualquer negligência por parte do custodiante, sendo suficiente que reste provada a violação de um dever de cuidado pelo menor ou interdito. De acordo com o art. 933 do Código Civil, “as pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos”. O dispositivo se conecta imediatamente com o art. 932, incisos I e II, do Código Civil. Dessa maneira, aplica-se a teoria da substituição. Quer dizer, os representantes substituem os representados perante as vítimas de danos por eles causados, pois se colocam na posição de garantes dos atos de incapazes. Prevalece o exposto no Enunciado n. 450 do Conselho de Justiça Federal: “A responsabilidade civil por ato de terceiro funda-se na responsabilidade objetiva ou independente de culpa, estando superado o modelo de culpa presumida”.

Mas, voltando ao exemplo do atropelamento causado pelo menor de 15 anos, eventualmente poderá o responsável carecer de recursos para enfrentar o montante reparatório e verificar-se que o incapaz, ao contrário, ostenta patrimônio suficiente para arcar com a recomposição dos danos. Por isso se assume que a responsabilidade será subsidiária. Afinal, alguém deve pagar a conta, mesmo sendo inimputável!

Avulta então perceber que o incapaz poderá ser considerado responsável patrimonial, mas jamais o devedor, pois é inimputável e não pratica ato ilícito. A sua incapacidade produzirá duas ordens de efeitos: (a) atrairá a responsabilidade objetiva dos pais, tutores ou curadores (art. 932, I e II, CC); (b) evidenciará a sua própria responsabilidade patrimonial, porém subsidiária e mitigada (parágrafo único, art. 928, CC).

Nessa linha de raciocínio, o filho menor não terá interesse nem legitimidade para recorrer da sentença condenatória proferida em ação proposta unicamente em face de seu genitor com fundamento na responsabilidade dos pais pelos atos ilícitos cometidos por filhos menores. Nos casos em que a demanda é endereçada tão somente contra os pais, para que seja admissível o recurso de pessoa estranha à relação jurídico-processual já estabelecida, faz-se necessária a demonstração do prejuízo sofrido em razão da decisão judicial, ou seja, o terceiro deve demonstrar seu interesse jurídico quanto à interposição do recurso. O Código Civil, no seu art. 932, trata das hipóteses em que a responsabilidade civil pode ser atribuída a quem não seja o causador do dano, a exemplo da responsabilidade dos genitores pelos atos cometidos por seus filhos menores (inciso I), que constitui modalidade de responsabilidade objetiva decorrente do exercício do poder familiar. É certo que, conforme o art. 942, parágrafo único, da lei civil, “são solidariamente responsáveis com os autores os coautores e as pessoas designadas no art. 932”. Todavia, o referido dispositivo legal deve ser interpretado em conjunto com os artigos 928 e 934 do Código Civil, que tratam, respectivamente, da responsabilidade subsidiária e mitigada do incapaz e da inexistência de direito de regresso em face do descendente absoluta ou relativamente incapaz. Destarte, o patrimônio do filho menor somente pode responder pelos prejuízos causados a outrem se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes. Mesmo assim, nos termos do parágrafo único do art. 928, se for o caso de atingimento do patrimônio do menor, a indenização será equitativa e não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependam.

Portanto, deve-se concluir que o filho menor não é responsável solidário com seus genitores pelos danos causados, mas, sim, subsidiário. Assim, tratando-se de pessoa estranha à relação jurídico-processual já estabelecida e não havendo demonstração do prejuízo sofrido em razão da decisão judicial, configura-se, na hipótese, a carência de interesse e legitimidade para a interposição de recurso.

Ainda no que concerne ao aspecto processual, seria temerário por parte da vítima demandar apenas contra o responsável. Mesmo que a pretensão seja procedente, se a execução for frustrada diante da insuficiência ou ausência de bens, não poderia a vítima executar em caráter subsidiário aquele incapaz que não ingressou no polo passivo da lide, pois o título não teria sido constituído contra ele. Consequentemente, culminaria por ajuizar uma segunda demanda contra o incapaz. Segundo o inciso LIV do art. 5º da Constituição Federal, “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

O ideal será que o incapaz participe do processo de conhecimento, no qual se dará um litisconsórcio sucessivo entre o causador do dano e o responsável. Ou seja, haverá uma cumulação subsidiária de pedidos com direcionamento subjetivo distinto: o segundo pedido é ofertado contra o incapaz na eventualidade da impossibilidade da condenação dos responsáveis pelo incapaz. Conforme consagra o art. 289 do Código de Processo Civil, “É lícito formular mais de um pedido em ordem sucessiva, a fim de que o juiz conheça do posterior, em não podendo acolher o anterior”. Diante da presença do incapaz, a intervenção do Ministério Público será obrigatória à luz do art. 178, II, do CPC/15. Em caso de procedência, a sentença será trifásica: primeiro, o magistrado reconhece a obrigação de indenizar e o respectivo quantum; segundo, delibera sobre a necessidade de o incapaz indenizar; terceiro, estipula qual será a participação do incapaz na reparação e o arbitramento do montante. Certamente, só se alcançará o patrimônio do menor ou do interdito se malograr a execução proposta contra o responsável, pois só nesse momento será possível constatar a ausência de patrimônio dos responsáveis. De certo modo prevalecerá raciocínio semelhante ao aferido na ação de alimentos proposta em face dos avós: estes respondem subsidiariamente, em caráter sucessivo e complementar.

Mas, se aquele que foi lesado pelo incapaz optar por propor ação apenas em face dos responsáveis pelo incapaz, poderá o autor, no curso do processo, requerer a citação do incapaz para integrar o polo passivo do processo, bem como a intimação do Ministério Público, consoante disposição do art. 178, inciso II, do CPC/15. Depois de conferida a oportunidade ao interessado para se defender, poderá haver o redirecionamento da ação para o seu patrimônio. O incidente cognitivo deve ser adotado sempre que se pretenda aplicar o art. 928 a um processo em curso, em qualquer fase que ele esteja. Trata-se de responsabilidade (do incapaz) sem dívida (que é do seu responsável).

O art. 928, caput, do Código Civil, traz ainda uma segunda circunstância de incidência de responsabilidade subsidiária do incapaz: “se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo”. Abre-se aqui a seguinte indagação: em qual situação os responsáveis desfrutarão de patrimônio suficiente para reparar os danos causados pelo incapaz, mas não terão obrigação de fazê-lo?

Cremos que a norma é despicienda, por duas razões: a uma, os pais, tutores e curadores sempre serão responsáveis primários por essa reparação; a duas, só não o serão quando destituídos da autoridade parental. Contudo, nessa hipótese, obviamente deixam de ser os responsáveis se o dano ocorreu por fato posterior à perda do poder de família.

Excepcionalmente, como aponta José Jairo Gomes, na época da ocorrência do dano injusto pode ainda não ter sido declarada a incapacidade do portador de transtornos mentais e, pois, não existir curador nomeado. Não é razoável que a proteção legal ao incapaz só ocorra após a declaração da incapacidade, já que a doença mental é um estado preexistente à declaração: a incapacidade decorre de um estado de fato que a sentença apenas reconhece. A lei não diz quem responderá pelo dano causado pelo incapaz na circunstância aludida. Mas, se ele tiver bens suficientes, manda o princípio da solidariedade social que o dever de indenizar seja reconhecido, devendo o montante ser fixado equitativamente. Contudo, não possuindo o autor do fato patrimônio bastante, são também a solidariedade e a cooperação sociais que orientam no sentido de que a vítima suporte os danos sofridos.

Interessante conjuntura será aquela em que o incapaz provoca danos e os seus pais se encontram divorciados, estando o menor sob a guarda exclusiva de um dos genitores, comumente a da mãe. Muitos poderiam acreditar que estaria o pai eximido de reparar prejuízos, tendo a genitora que suportá-los isoladamente (este , aliás, é o posicionamento do STJ). Ledo engano! Quando o inciso I do art. 932 do Código Civil atribui a reparação civil aos pais, pelos filhos menores, que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia, em nenhum instante delimita a demanda da vítima somente em face daquela mãe que tinha o poder de controle imediato sobre o menor ao instante do ato antijurídico.

Caso o ofendido perceba que o pai possua evidente superioridade econômica, poderá contra este litigar, isoladamente ou com a formação de litisconsórcio passivo facultativo, assegurada a solidariedade passiva conforme o parágrafo único do art. 942 do Código Civil.

Não se olvide que o pai compartilha o poder de família, mesmo não tendo a guarda, e que o ordenamento privilegia o acesso da vítima à reparação. Essa lide será fundada na teoria objetiva da responsabilidade civil (art. 933, CC).

Nada obstante, prosseguindo no exemplo, caso a mãe efetivamente detivesse o poder de direção sobre o filho, poderia o pai ajuizar ação de regresso em face da ex-esposa.

Contudo, a demanda de regresso seria pautada na teoria subjetiva da responsabilidade civil, cabendo a demonstração do ato ilícito vazado na conduta omissiva e negligente por parte daquela que em tese poderia controlar o filho e evitar a sua conduta antijurídica.

Esse é o teor do Enunciado n. 449 do Conselho de Justiça Federal: “Considerando que a responsabilidade dos pais pelos atos danosos praticados pelos filhos menores é objetiva, e não por culpa presumida, ambos os genitores, no exercício do poder familiar, são, em regra, solidariamente responsáveis por tais atos, ainda que estejam separados, ressalvado o direito de regresso em caso de culpa exclusiva de um dos genitores”.

Encerrando o exame da subsidiariedade, percebe-se aparente conflito entre a regra que a fundamenta (art. 928, CC) e o parágrafo único do art. 942 do Código Civil, dispondo que “são solidariamente responsáveis com os autores os coautores e as pessoas designadas no art. 932”. Ora, sendo certo que os incisos I e II do citado art. 932 fazem referência à responsabilidade de pais, tutores e curadores quanto aos atos praticados por incapazes, o que prevalece, portanto, a subsidiariedade (928) ou a solidariedade (942)? Podemos buscar duas respostas, uma simplista e outra sistemática, sendo que ambas conduzem ao mesmo resultado. A primeira resposta é singela: em face do conflito aparente de normas, a regra especial prevalece sobre a regra geral. Ou seja, vale o art. 928 nos casos de fatos antijurídicos cometidos por menores e interditos. A segunda resposta é intrassistêmica.

Sendo a responsabilidade do incapaz excepcional no direito privado e condicionada à falta de recursos econômicos do seu responsável, não faria sentido conceder à vítima a liberdade de, a priori, escolher contra quem litigar, a ponto de imediatamente convocar o patrimônio do incapaz sem que se faça um prévio exame da (in)suficiência financeira do responsável para arcar com o montante reparatório. Em suma, excluem-se da incidência do parágrafo único do art. 942 os incisos I e II do art. 928, prevalecendo a solidariedade nos demais incisos.

IV. A EQUIDADE COMO FUNDAMENTO.

Adiante, há de se destacar que a excepcional responsabilidade civil dos incapazes tem como fundamento a equidade. Definitivamente, não se trata de responsabilidade por ato ilícito (pois o incapaz não perpetra ilícitos civis), nem tampouco responsabilidade objetiva pela teoria do risco (já que não se vislumbra atividade de risco em tais casos). Pode-se atrelar à equidade o princípio da solidariedade (art. 3º, I, da CF), impondo maior tutela em prol das vítimas. Mas, por outro lado, qual seria o fundamento equitativo de se extrair o patrimônio de um inimputável?

Em verdade, a equidade resulta de um juízo de ponderação de interesses. De um lado, o ofendido contará com maiores possibilidades de recompor o patrimônio abalado pela lesão, pois poderá alcançar os bens do incapaz; de outro lado, os bens do menor ou do interdito serão alcançados apenas subsidiariamente e de forma mitigada, sem jamais correr o risco de privação de seu patrimônio mínimo. Daí a obrigatoriedade de sua observância por parte do magistrado.

Além de subsidiária – como já vimos –, a responsabilidade em questão é mitigada, consoante dispõe o parágrafo único do art. 928 do Código Civil: “A indenização prevista neste artigo, que deverá ser equitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem”. Portanto, se a reparação em questão deixar o incapaz em situação de precariedade econômica ou mesmo as pessoas que dele dependam, o dano não será objeto de reparação, perdendo a norma por completo a sua eficácia. Incide aqui o Enunciado n. 39 do Conselho de Justiça Federal: “A impossibilidade de privação do necessário à pessoa, prevista no art. 928, traduz um dever de indenização equitativa, informado pelo princípio constitucional da proteção à dignidade da pessoa humana”.

Urge ressaltar que enquanto a incapacidade, para efeito de incidência do artigo 928, é a do momento do evento danoso, a aferição do patrimônio suficiente é a do momento de sua constrição e não antes, porque é nesse momento que se deve considerar a possibilidade de reequilíbrio patrimonial em relação à vítima do evento; de nada adiantaria a lei expor não haver a privação do necessário para o incapaz e quem dele dependa se essa constatação não ocorresse no momento da invasão patrimonial. Somente na fase constritiva haverá a solução subsidiária. Entendimento contrário – ou seja, avaliação do patrimônio suficiente ao tempo do ato antijurídico – equivaleria a assumir que o incapaz seria devedor, quando na verdade é mero responsável patrimonial.

A equidade atuará duplamente: seja como fonte e fundamento da responsabilidade; seja como justificativa para a mitigação do montante da reparação. O magistrado não fixará a reparação integral. A razão da negativa quanto à reparação integral será o fato de que um incapaz que não possui o mesmo poder de intelecção que uma pessoa de total discernimento não poderá pessoalmente se comprometer pela integralidade do prejuízo causado, mas apenas parcialmente.

Prosseguindo a hermenêutica do referido parágrafo único, nem mesmo parcialmente será o patrimônio do incapaz atingido, caso isso implique supressão de seu mínimo existencial.

Basta cogitar do incapaz que herdou um pequeno imóvel de sua mãe enquanto o seu pai nada titulariza. O responsável não poderá indenizar, e o mesmo se diga do autor do dano, embora o valor do bem de raiz supere o montante dos danos.

Se o incapaz puder, entretanto, fazer face ao dano sem desfalque econômico, a indenização em questão não será mitigada, e sim integral. Digamos que alguém, riquíssimo, embora interditado por problemas mentais, põe fogo em modesto barraco, expondo humilde família à miséria. A indenização, nesse caso, deverá ser integral, abrangendo os danos morais e materiais havidos, sendo absurdo imaginar qualquer redução.

Tudo o que aqui se comentou apenas se aplica à responsabilidade civil extranegocial. Via do exposto, o menor relativamente incapaz responde diretamente pelas obrigações contratuais assumidas sem o assistente, não podendo, para se eximir de uma obrigação, “invocar a sua idade se dolosamente a ocultou quando inquirido pela outra parte, ou se, no ato de obrigar-se, declarou-se maior” (art. 180 do CC). Não se aplica, à espécie, o art. 928 se, digamos, um menor (relativamente incapaz), com 17 anos, aluga um apartamento, dizendo-se maior (documentos falsos, por exemplo), e torna-se inadimplente (passa um ano sem pagar o aluguel). Nesse caso, o locador pode acioná-lo diretamente, e sobre o patrimônio do menor, caso exista, recairá a penhora. Portanto, de nada valerá ao menor alegar sua incapacidade relativa, e a suposta anulabilidade do contrato, já que o art. 180 é peremptório ao prescrever: “O menor, entre dezesseis e dezoito anos, não pode, para eximir-se de uma obrigação, invocar a sua idade se dolosamente a ocultou quando inquirido pela outra parte, ou se, no ato de obrigar-se, declarou-se maior”. Não há necessidade, em casos tais, de, invocando o art. 928, acionar primeiro os responsáveis para, somente depois, na ausência de patrimônio destes, buscar os bens do próprio incapaz. O maior de 16 e menor de 18, se maliciosamente assume obrigações, por elas diretamente responde, em razão do que dispõe o art. 180 do Código Civil. Naturalmente que, sendo menor, no caso, relativamente incapaz, empenha responsabilidade solidária dos pais ou responsáveis (art. 932, I). Nessa trilha, inexistindo patrimônio em nome do menor, nada impede que a vítima acione os responsáveis, para ver reparados os prejuízos sofridos.

V. A EMANCIPAÇÃO.

A outro giro, a menoridade, de acordo com o art. 5o do Código Civil, cessa aos 18 anos, idade em que se está habilitado à prática dos atos da vida civil. Nesse instante cessa a autoridade parental e os deveres familiares pontuados no art. 227 da Constituição Federal.

Qualquer demanda oriunda de ato ilícito danoso cometido pelo maior que completou 18 anos antes da data do fato lesivo contra ele exclusivamente será ajuizada. Contudo, é fundamental registrar que os pais serão eximidos de reparação de danos pela senda da responsabilidade objetiva (arts. 932, I, c/c 933, CC). Dessa forma, se o ilícito cometido pelo filho maior se deu com a colaboração de uma conduta culposa do pai (v. g., emprestou o carro ao filho maior e sem habilitação), fatalmente o ascendente responderá solidariamente, a teor do parágrafo único do art. 942 do Código Civil. Aliás, em caráter de simetria, basta recordar que no caso de homicídio contra filho maior de 18 anos, os pais privados de recursos recebem indenização até que completem determinada idade.

Porém, de acordo com o parágrafo único do art. 5º, não raramente ocorre a emancipação, hipótese de antecipação da capacidade plena. A emancipação, em qualquer de suas hipóteses, equivale à maioridade civil. O emancipado, em princípio, responde isoladamente pelos danos que causar. O inciso I do art. 932 pontua que os pais são responsáveis “pelos filhos menores…”.

Aqui há uma única e importante exceção, construída pela jurisprudência e que concerne à emancipação voluntária, ou seja, aquela em que os pais, comparecendo em cartório, manifestam o desejo de emancipar o filho maior de 16 anos. Nesse caso, como a autonomia patrimonial obtida pelos filhos é quase sempre restrita ao plano jurídico, sem consequências práticas efetivas, posto mantida a dependência econômica perante os pais – ao contrário do que ocorre na emancipação pelo casamento ou pela atuação empresarial –, tal e qual uma fraude contra credores, a emancipação em cartório permanece válida, porém ineficaz em face de eventuais vítimas de condutas antijurídicas do emancipado.

Assim, o ofendido poderá não apenas litigar contra o autor do fato (na condição de plenamente capaz) e de seus pais, firmando-se responsabilidade solidária. A propósito, o Enunciado n. 41 do Conselho de Justiça Federal, cujo teor confirma: “A única hipótese em que poderá haver responsabilidade solidária do menor de 18 anos com seus pais é ter sido emancipado nos termos do art. 5º, parágrafo único, inciso I, do novo Código Civil”.

Hipótese peculiar é aquela em que um adolescente de 12 anos pratica ato infracional, sendo condenado a uma medida socioeducativa. De acordo com o art. 116 do Estatuto da Criança e do Adolescente, “em se tratando de ato infracional com reflexos patrimoniais, a autoridade poderá determinar, se for o caso, que o adolescente restitua a coisa, promova o ressarcimento do dano, ou, por outra forma, compense o prejuízo da vítima”. “Esse dispositivo excepciona a subsidiariedade do parágrafo único do art. 928 do Estatuto Civil, pois prevê a responsabilidade direta do adolescente infrator. Desse entendimento não discrepa o Enunciado n. 40 do Conselho de Justiça Federal”: “o incapaz responde pelos prejuízos que causar de maneira subsidiária ou excepcionalmente como devedor principal, na hipótese do ressarcimento devido pelos adolescentes que praticarem atos infracionais nos termos do art. 116 do Estatuto da Criança e do Adolescente, no âmbito das medidas socioeducativas ali previstas”.

VI. A EXTENSÃO AS PESSOAS CURATELADAS.

A hermenêutica do conceito de “incapacidade” transcende o conceito da menoridade e alcança as pessoas sob curatela. A vigência do Estatuto da Pessoa com Deficiência não afetou a aplicação do art. 928 do Código Civil. A Lei n. 13.146/15 caminha no sentido personalista da Convenção de Direitos das Pessoas com Deficiência. Em seu art. 2º conceitua a pessoa com deficiência como aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial. De acordo com o art. 84, “A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas”. O § 1º do mesmo art. 84 preconiza que: “Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei”. Em arremate, o § 3º aduz que, “A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível”.

Até aqui, percebemos que o Estatuto da Pessoa com Deficiência admite em caráter excepcional o modelo jurídico da curatela, porém, sem associá-la à incapacidade absoluta.

Portanto, a Lei n. 13.146/15 nos remete a dois modelos jurídicos de deficiência: deficiência sem curatela e deficiência qualificada pela curatela. A deficiência como gênero engloba todas as pessoas que possuam uma menos valia na capacidade física, psíquica ou sensorial –, independente de sua gradação –, sendo bastante uma especial dificuldade para satisfazer as necessidades normais. O deficiente desfruta plenamente dos direitos civis, patrimoniais e existenciais. Porém, se a deficiência se qualifica pelo fato de a pessoa não conseguir se autodeterminar, o ordenamento lhe conferirá proteção ainda mais densa do que aquela deferida a um deficiente capaz, demandando o devido processo legal de curatela.

Equivocam-se os que creem que a partir da vigência do Estatuto todas as pessoas que forem interditadas serão consideradas plenamente capazes. A garantia de igualdade reconhece uma presunção geral de plena capacidade a favor das pessoas com deficiência.

Isso significa que, através de relevante inversão da carga probatória, a incapacidade surgirá excepcional e amplamente justificada. Por conseguinte, a Lei n. 13.146/15 mitiga, mas não aniquila a teoria das incapacidades do Código Civil. As pessoas deficientes submetidas à curatela são removidas do rol dos absolutamente incapazes do Código Civil e enviadas para o catálogo dos relativamente incapazes, com uma renovada terminologia.

Doravante, o ser humano com deficiência não será uma pessoa absolutamente incapaz, mesmo se submetida à curatela. É desproporcional e desumano atrelar a curatela à incapacidade absoluta.

A nova redação do inciso III, do art. 4º (Lei n. 13.146/15) remete aos confins da incapacidade relativa “aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade”. Aqui se revela a intervenção qualitativamente diversa do Estatuto da Pessoa com Deficiência na teoria das incapacidades: Abole-se a perspectiva médica e assistencialista de rotular como incapaz aquele que ostenta uma insuficiência psíquica ou intelectual. Corretamente o legislador optou por localizar a incapacidade no conjunto de circunstâncias que evidenciem a impossibilidade real e duradoura da pessoa querer e entender – e que, portanto, justifiquem a curatela –, sem que o ser humano, em toda a sua complexidade, seja reduzido ao âmbito clínico de um impedimento psíquico ou intelectual. Ou seja, o divisor de águas da capacidade para a capacidade não mais reside nas características da pessoa, mas no fato de se encontrar em uma situação que as impeça, por qualquer motivo, de conformar ou expressar a sua vontade.

Em síntese, a Lei n. 13.146/15 absolve seres humanos do “pecado original” da incapacidade absoluta como “portadores” de grave deficiência ou enfermidade mental, remetendo-os ao rol dos relativamente incapazes, sob o pálio do impedimento de exprimir a vontade. Assim, a pessoa com deficiência será civilmente capaz e os atos patrimoniais e existenciais que protagonize serão considerados válidos e eficazes, quando não estiver submetida à curatela. O Estatuto deseja prioritariamente promover a autonomia e, subsidiariamente protegê-la. A proteção só se aplica à pessoa com deficiência quando estritamente necessária, sem que a impeça de caminhar com as “próprias pernas”, eventualmente incidir em equívocos e, se for o caso, se responsabilizar, seja por atos negociais, como por comportamentos antijurídicos, na forma do art. 928 do Código Civil, dispositivo que abrange a categoria dos relativamente incapazes.

VII. CONCLUSÃO.

Seja o autor do fato um menor ou a pessoa com deficiência, quando o pai, tutor ou curador efetua o pagamento da condenação por danos patrimoniais e/ou morais, poderá obter direito de regresso contra os filhos, tutelados e curatelados? Segundo o art. 934 do Código Civil, “Aquele que ressarcir o dano causado por outrem pode reaver o que houver pago daquele por quem pagou, salvo se o causador do dano for descendente seu, absoluta ou relativamente incapaz”. Pela leitura do dispositivo, a objeção ao regresso se dá apenas nas relações entre pais e filhos. Com o objetivo de evitar conflitos familiares, o legislador vedou o ingresso dos pais no patrimônio do filho que praticou o fato ilícito, mesmo que o pagamento da condenação acarrete prejuízos mediatos a seus irmãos, eventualmente privados de um melhor nível de vida. Objetivando amortecer tais consequências, mesmo que a médio ou longo prazo, prevê o art. 2.010 do Código Civil que “Não virão à colação os gastos ordinários do ascendente com o descendente, enquanto menor, na sua educação, estudos, sustento, vestuário, tratamento nas enfermidades, enxoval, assim como as despesas de casamento, ou as feitas no interesse de sua defesa em processo-crime”. Tal e qual no ditado popular, “a vingança tarda, mas não falha”. Quando da morte do responsável, aqueles valores pagos pelo falecido serão imputados como adiantamento da legítima em processo cível – o que não se aplica ao processo-crime –, sendo a reparação deduzida da cota-parte do herdeiro beneficiado.

Todavia, no que tange ao desembolso efetuado por tutores e curadores em razão de condutas danosas praticadas por tutelados e curatelados, caberá o direito de regresso.

Aquelas pessoas exercem um munus, de nítido caráter assistencial e que visa substituir o poder familiar em face das pessoas cujos pais faleceram ou foram julgados ausentes, ou ainda quando foram suspensos ou destituídos daquele poder (no caso do tutor), ou quando o maior ofensor é pessoa portadora de transtornos mentais, com redução ou eliminação de discernimento (no caso da curatela). Exceto nos casos em que a pessoa do curador coincidentemente for um dos pais, caberá o regresso por todas as quantias desembolsadas em prol da vítima, desde que não privem os incapazes de recursos necessários ao perfazimento de seu mínimo existencial. Não se olvide que o parágrafo único será aplicado para fins de resguardar o limite econômico humanitário, não apenas quando a lide for promovida pela vítima, mas também quando a demanda de regresso for instaurada pelo tutor ou curador.

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